Sensos-e Vol: 0  ISSN 2183-1432
URL: http://sensos-e.ese.ipp.pt/?p=4392

A Mobilização de Conhecimentos Durante a Leitura, na Aula de Língua Portuguesa

Autor: Ana Isabel Pinto Afiliação: ESE/IPP

Resumo: Uma vez que a leitura e a educação literária são dois aspetos centrais na estrutura típica da aula de Língua Portuguesa e porque entendemos que o texto literário convida a um diálogo entre o leitor e o texto, decidimos centrar a nossa atenção, neste artigo, na forma como se relacionam conhecimentos prévios durante a leitura de textos nas aulas. Perspectivando a leitura como um processo interactivo e integrativo que precisa do conhecimento prévio do aluno para se efectivar, tomámos por opção realizar um estudo prático de observação de quatro aulas videogravadas, com o intuito de, pela análise da típica aula de Língua Portuguesa, caracterizar o processo de construção de sentidos e de compreender como se consubstancia, nos momentos de interacção com e sobre os textos, o princípio pedagógico da inter-relação de saberes.
Pela análise das 42 sequências que seleccionámos como objecto específico do nosso trabalho, concluímos que, embora em todas as aulas encontrássemos exemplos de sequências com mobilização de conhecimento prévio, essa mobilização, na maioria dos casos, não ocorre com o objectivo de fazer evoluir esse conhecimento prévio e de o transformar em novo conhecimento utilizável; pelo contrário, essa mobilização ocorre, na maioria das vezes, com o objectivo de resolver problemas imediatos da compreensão de texto ou com a intenção de avaliar conteúdos anteriormente leccionados. Por outro lado, verificámos que essa relação de conhecimentos, que se demonstrou maioritariamente do tipo “escolar intradisciplinar” e do tipo “heterogerado”, ocorre, quase sempre, no momento “durante a leitura”, o que parece desvalorizar o momento “antes da leitura” como o momento charneira de preparação para o texto e para os novos ecos que esse texto poderá transmitir.
Em suma, estamos perante aulas onde não se evidencia uma preocupação em melhorar a competência de leitura e consequentemente a competência comunicativa dos alunos, por meio da leitura literária, mas antes uma preocupação em desenvolver a competência linguística ou gramatical dos mesmos. A concepção de aula de Língua Portuguesa que aqui ficou plasmada não parece, ainda, integrar as orientações, tanto da investigação como até mesmo programáticas, quanto ao que devem ser também os objectivos do trabalho com textos: ensinar estratégias de leitura, inclusivamente estratégias de relação de conhecimentos, que, acredita-se, quando efectivamente trabalhadas levam os alunos a ler mais, melhor e de forma mais duradoura.

Palavras-Chave: : Leitura, conhecimentos prévios, observação de aulas

Abstract: Since reading and literary education are two central aspects in the typical structure of a lesson of Portuguese language and because we consider that the literary text requests a dialogue between the reader and the text, for this research we have decided to focus our attention in the way previous knowledge is related during text reading in language classrooms. Conceiving reading as an interactive and integrative process which to be effective requires the pupils to have previous knowledge, we chose to observe four videotaped lessons, aiming at, through the analysis of a typical lesson of Portuguese, the characterization of the meaning making process and the understanding of how it is achieved the pedagogical principle of knowledge interrelation during the interaction with and about the texts.
Through the analysis of the 42 interactive sequences that we took as specific object of our study, we concluded that, even though we could find examples of sequences with previous knowledge mobilization in all lessons, it does not occur with the objective of developing that previous knowledge and transforming it into new one; on the contrary, that mobilization occurs most of the times with the objective of solving immediate problems of text comprehension or with the intention of evaluating contents previously taught.
On the other hand, we verified that that knowledge relation, which is, most of the time, of “intrasubjects knowledge” type and “heterogenerated” type, occurs, almost always, “during reading”, what seems to minimize the moment “before reading” as the core moment of preparation for the text and for the new echoes that text may convey.
As a conclusion, we may say that we are in the presence of lessons where there isn’t a concern with improving reading performance and consequently the communicative performance of the pupils through literary reading, but on the contrary a concern in developing just their linguistic or grammatical competence.
The Portuguese lessons which have been portrayed here does not seem to integrate either research or syllabus orientations, in what concerns as well the objectives for text work in the classroom: to teach reading strategies, inclusively strategies for knowledge relation, which is believed has the potential to promote more and better reading in a lasting way, when effectively worked out.

Keywords: reading, previous knowledge, lessons observation

A Mobilização de Conhecimentos Durante a Leitura, na Aula de Língua Portuguesa

Autor: Ana Isabel Pinto Afiliação: ESE/IPP

1. Introdução

Porque durante toda a nossa vida passamos inúmeros momentos a ler, a interpretar e a compreender, faz todo o sentido que a Escola ensine desde cedo estratégias de aperfeiçoamento da leitura e ensine a ler de diversas formas e a ler diversas realidades/sentidos: ler uma imagem, ler uma situação, ler uma conversa, ler um texto. Só assim, o aluno se tornará num leitor autónomo de realidades, autonomia essa que é fundamental para enfrentar os sempre novos desafios que a leitura lhe coloca.

Talvez porque a leitura é uma das competências mais trabalhadas na aula de Língua, são múltiplos os estudos sobre este domínio. No caso das aulas de Língua Portuguesa, também desde há muito que se vem a estudar as formas de presença e as modalidades do seu ensino e aprendizagem. Neles, a mobilização de conhecimentos prévios é um processo continuamente considerado fundamental para o desenvolvimento da competência leitora.

Com o presente artigo pretende-se compreender como, em aulas de português (ou língua portuguesa) do 2º Ciclo se procede à mobilização de conhecimentos prévios no momento de leitura de textos.

2. Objecto e Objectivos

Já vários estudos chamaram a atenção para a importância do relacionamento de conhecimentos por meio da leitura para melhorar as aprendizagens. Este é, também, um estudo que surgiu da consciencialização da importância de relacionar conhecimentos aquando da leitura, no sentido de levar os alunos quer à aprendizagem de conteúdos, quer à compreensão progressiva de textos.

Por outro lado, é um trabalho que visa, de certa forma, responder à questão deixada em aberto no texto “A interacção verbal em contexto pedagógico” de Castro (1991:355-356), onde se diz:

“a partir do modelo de análise aqui esboçado várias perspectivas de trabalho se abrem no sentido de conhecer cada vez melhor o processo educativo e as condições em que ele se realiza. Deste modo (…) as perguntas orientadoras de trabalhos futuros poderiam ser do tipo: (…) «como se mobilizam os conhecimentos prévios dos sujeitos, quais e quando?» (…). A resposta a estas e outras perguntas semelhantes permitirá um conhecimento mais profundo do processo de ensino/aprendizagem (…) ”.

Sabendo da relevância dos conhecimentos prévios para a construção de sentidos durante a leitura, este é um estudo que tem como objecto as práticas escolares de leitura na aula de Língua Portuguesa, concretamente aulas de 2º ciclo, lugares determinantes no desenvolvimento de competências e hábitos de leitura, procurando conhecer o modo como se recorre a princípios estimados como legítimos para a compreensão de textos. Com este fim, centramo-nos na interacção verbal em torno dos movimentos de leitura de textos na aula de Língua Portuguesa. Partindo do princípio de que a aprendizagem na Escola se faz sobretudo por meio da leitura, é objectivo deste trabalho estudar a forma como, em contexto pedagógico, se recuperam os conhecimentos prévios dos alunos sobre um determinado assunto que o texto literário motiva.

Assim, definimos como principais objectivos do trabalho:

- Caracterizar o processo de construção de sentidos na aula de Língua Portuguesa;

- Compreender como é que se consubstancia, nos momentos de interacção com e sobre textos, o princípio pedagógico da inter-relação de saberes;

- Estudar o modo como os professores fazem os alunos mobilizar as suas experiências e os seus saberes no processo de construção de sentidos;

A partir destes três objectivos, outros mais específicos foram gerados:

- Identificar as oportunidades que os professores criam (e aproveitam) para fazer os alunos relacionar o “novo” do texto com os seus conhecimentos linguísticos, culturais, experienciais, educacionais;

- Caracterizar essas oportunidades em vários níveis:

  1. o modo como se gera a mobilização de conhecimentos;

  2. o momento da mobilização de conhecimentos;

  3. o tipo de conhecimento mobilizado;

  4. os objectivos da mobilização de conhecimentos;

Neste sentido, pretende-se estudar as oportunidades criadas e aproveitadas por professores e alunos para a construção do “texto dual” de que nos fala K. Goodman (1985), no momento de leitura de textos.

De acordo com estes objectivos interessa-nos, portanto, responder a perguntas como:

- Como são mobilizados os conhecimentos?

- Quando são mobilizados os conhecimentos?

- Que tipo de saberes são mobilizados?

- Com que objectivo são mobilizados?

3. Níveis de Análise

Relativamente ao papel dos alunos neste processo de mobilização de conhecimentos, o que se pretende verificar é se essa mobilização é dependente de solicitações do professor, por isso, se a mobilização é, pode dizer-se, “heterogerada”, ou se é independente da solicitação do professor, neste caso “autogerada”. 

Num segundo momento de análise, e na perspectiva de estudar o momento em que ocorre a mobilização de conhecimentos, no âmbito do desenvolvimento da competência leitora, delimitámos nas aulas três grandes momentos:

- Antes da Leitura

- Durante a Leitura

- Depois da Leitura

Posteriormente, classificou-se cada sequência segundo se encontrava num desses três momentos.

Considerámos esta divisão em três momentos de leitura pela relevância que lhe tem sido atribuída nos estudos sobre leitura escolar, como por exemplo no texto de Sequeira (1999: 410), onde se diz que para que o processo escolar de leitura se torne mais completo, significativo e eficaz é importante ter em conta aquela organização.

Segundo Sequeira (1999:411), o momento “durante a leitura” é a ocasião onde se trabalham as estratégias que apontam para a construção de significados. Entendemos que é o momento em que professor e alunos desenvolvem actividades em volta dos sentidos do texto, como por exemplo a realização de questionários, fichas e outros.

O momento “depois da leitura” é aquele em que o professor pede avaliações sobre o que se leu, em que se produzem maiores conclusões sobre a macroestrutura do texto. Como afirma Sequeira (1999:411), é o momento em que se fazem perguntas “sobre se os objectivos da leitura foram atingidos, se as suas hipóteses e previsões foram satisfeitas, se é capaz de destacar as ideias principais do texto, etc.”. Além disso, numa aula “típica” de Português, é o momento de transição para o desenvolvimento de outras competências como a escrita e o Funcionamento da Língua, ainda que não tenha de ser necessariamente assim. Entendemos, por isso, como mobilização de conhecimentos “depois da leitura”, os movimentos de inter- relação de saberes no momento em que as actividades já vão para além dos sentidos mais imediatos do texto lido.

Para o terceiro momento de análise, partimos do princípio que são vários os tipos de conhecimentos que podem ser mobilizados dentro da sala de aula, concretamente a propósito da leitura de texto. Para a classificação dos actos de mobilização segundo o seu tipo, elaborámos, então, uma tipologia de “conhecimentos” conforme a sua relação com as esferas de actuação dos alunos. Basicamente são de dois tipos os “conhecimentos” a considerar:

- Conhecimento escolar

- Conhecimento extra-escolar

Considerámos “conhecimento escolar” todo o saber que constitui conhecimento explícito da escola e que constitui conteúdo de uma determinada disciplina.

Por sua vez, ainda dentro dos “conhecimentos escolares” considerámos conhecimentos de dois tipos:

- Conhecimentos intradisciplinares

- Conhecimentos interdisciplinares

Tomamos como “conhecimento escolar intradisciplinar” todo o conhecimento transmitido dentro da escola numa determinada disciplina, neste caso na disciplina de Língua Portuguesa e mobilizado no seio dela mesma.

Este conhecimento intradisciplinar pode ser de vários tipos, por exemplo, “conhecimento literário”, demonstrado no exemplo anterior ou “conhecimento gramatical”, que referenciamos para efeitos de operacionalização a questões de morfossintaxe.

Relativamente aos “conhecimentos interdisciplinares” serão todos aqueles conhecimentos que constituem conteúdo explícito de uma outra disciplina que não a de Língua Portuguesa.

Como conhecimento extra-escolar do “mundo”, compreendemos todo o conhecimento genérico, colectivo, não especializado, veiculado pela experiência de vida ou fruto da vivência fora de contexto escolar e que por esse motivo não constitui conteúdo explicitamente escolar.

O estudo dos objectivos que levam à mobilização de conhecimentos, seja pela parte do aluno, seja pela parte do professor constituiu um quarto momento de análise. Estes objectivos, independentemente de sabermos que muitas vezes são identificados por inferência do analista, podem ser por exemplo: comparar, construir, relacionar.

 

4. Conhecimentos prévios e práticas de leitura na aula de Língua Portuguesa

Na escola, os professores dão a ler textos aos alunos segundo determinada metodologia. Como tal, qualquer abordagem textual veicula um modo de conceptualização do que é ler um texto. Assim, o modo como se estabelece a leitura nas aulas em estudo, à luz da análise por nós efectuada, aponta para o propiciar da mobilização de conhecimentos prévios no momento de leitura de textos.

Neste sentido, como se pode ver no quadro a seguir, todas as quatro aulas em análise, sendo elas orientadas por professores diferentes, incluem sequências que apresentam este tipo de movimentos de leitura.

Quadro 2 – Distribuição total das sequências com mobilização de conhecimentos

Aula

N.º total de sequências em torno dos movimentos de leitura de   texto

N.º de sequências com mobilização de conhecimento prévio

A

26

6   (23%)

B

25

13   (52%)

C

25

9   (36%)

D

35

14   (40%)

Total

111

42

São, todas elas, exemplos de abordagens textuais onde se procura envolver o conhecimento prévio do aluno na criação do novo texto em construção, a que Goodman (1985) chama “texto dual”. Repare-se que, em cada uma das quatro aulas observadas, mais de 20% das sequências propiciam a mobilização de conhecimentos prévios. Desta forma, estamos perante um conjunto de práticas (embora umas em maior escala do que outras) que seleccionam questões que envolvem activamente o leitor, ajudando-o a criar novas imagens mentais sobre conceitos que irão contribuir para uma construção criativa e individual do texto fornecido. Deste modo, a aprendizagem da leitura é, aqui, vista na perspectiva de Tollefson (1989:2) como “um processo de constante formação, testagem e revisão de hipóteses… [onde] o esforço para acomodar a nova informação à já possuída constitui o núcleo da aprendizagem”. É, pois, uma visão activa e interactiva do processo de aprendizagem onde, inclusive, numa das aulas, o professor e o aluno chegam, até, a trocar de papéis.

O quadro n.º 2, apresentado atrás, dá conta da frequência, por aula, das sequências com mobilização de conhecimentos prévios. Num total de quatro aulas observadas, deparámo-nos com um conjunto de 42 sequências com mobilização de conhecimentos prévios, numa média de 41% por aula. No entanto, podemos observar que a distribuição por aula das 42 sequências que constituem a totalidade do corpus é bastante irregular. Na  aula A , identificámos um total de 23% de sequências com mobilização de conhecimentos prévios, ao passo que, na aula B, temos mais do dobro das sequências( 52% de sequências com mobilização de conhecimento prévio). A aula C conta com 36% de sequências com mobilização de conhecimento prévio e a aula D com 40% de sequências que envolvem a mobilização desses conhecimentos.

Tendo em conta que os textos estudados são todos eles diferentes e que os sujeitos envolvidos também, seria teoricamente expectável uma variação no número de sequências de aula para aula. No entanto, há, por exemplo, uma maior discrepância das aulas A e C para as aulas B e D. A justificação para esta diferença pode residir no facto de as aulas A (ver textos – Aula A) e C (ver texto – aula C) se concentrarem apenas em torno do texto narrativo, ao passo que a aula B (ver textos – aula B) apresenta um texto narrativo e outro poético e a aula D (ver textos – aula D) centra-se, apenas, no texto poético.

Julgámos, por isso, que o tipo de texto em análise poderá influenciar a frequência da mobilização de conhecimentos prévios, na medida em que estes, em torno do texto poético, são mais frequentes do que em torno do texto narrativo. Uma das razões que pode estar na origem da “vantagem” da utilização de poemas para propiciar a mobilização de conhecimentos prévios é o facto de este ter, na sua maioria, mais implícitos que o texto narrativo, pelo facto de o poema ter uma maior condensação semântica.

Por curiosidade, repare-se, ainda, que a etimologia grega da palavra “poema” aponta para uma visão deste tipo de texto como uma construção colectiva e que pode necessitar de mais conhecimentos prévios do leitor para o interpretar e o edificar face ao texto narrativo. Tomando-se, como ponto de partida, a origem grega da palavra “poema” (*) e alguns dos inúmeros sentidos a ela ligados, podemos chegar a “POIÉO” (verbo) que pode significar “fazer” ou “compor”; à palavra “POIEMA” (substantivo, género neutro) que significa “o que se faz” e à palavra “POIESIS” (substantivo, género feminino) que designa “acção de fazer”. Repare-se, ainda, que todas estas significações apontam para a poesia como um tipo de texto onde a acção e a interactividade do leitor são factores indispensáveis para a compreensão do mesmo. É evidente que estes dados, por si só, não nos permitem afirmar que a poesia seja, em relação à prosa, um tipo de texto mais propício à mobilização de conhecimentos prévios. Seriam, pois, necessários mais estudos em torno de um número mais significativo de aulas e em torno dos vários modos literários para se afirmar tal facto. O que podemos, pelo contrário, defender é que este estudo parece, apenas, indicar essa inclinação, podendo ser esta a justificação para as aulas B e C terem mais sequências com mobilização de conhecimento prévio.

4.1         Tipo de solicitação de conhecimentos

As aulas analisadas apresentam a estrutura típica da interacção verbal em sala de aula, uma vez que apresentam uma organização sequencial e hierárquica. Neste sentido, todas as aulas são formadas por sequências que, por sua vez, apresentam trocas do tipo [A(*) - R(*) ] e do tipo [A - R- F(*) ]. Logo, no momento de abertura, tipicamente administrado pelo professor, observamos que este solicita, quase sempre, uma tarefa ou resposta ao receptor. Verificamos também que a essa resposta se segue frequentemente um movimento de avaliação ou de nova abertura do discurso.

Depois de analisados os dados, observamos que, na quase totalidade das sequências, o professor é, maioritariamente, quem solicita a abertura do discurso e quem, por isso, leva à mobilização de conhecimentos prévios.

Quadro 3 -  A solicitação de conhecimentos

Aula

Tipo de solicitação de conhecimentos

heterogerada

Autogerada

A

6

0

B

12

1

C

8

1

D

14

0

Total

40

2

Assim, da totalidade das 42 sequências que constituem o corpus deste trabalho, apenas duas são “mobilizações autogeradas”, isto é, solicitadas pelo aluno. Desta forma, num total de quatro aulas, encontrámos uma percentagem de “mobilizações heterogeradas”de 99,23% enquanto que apenas encontramos 4,76% de “mobilizações autogeradas”. Note-se, igualmente, que esta mobilização por parte dos alunos apenas se regista nas aulas B e C.

 

4.2 Os momentos mais propícios à mobilização de conhecimentos

Como referimos anteriormente, parece unânime, pelos vários estudos sobre leitura escolar que mencionámos, que, para que o processo escolar de leitura se torne mais completo, significativo e eficaz é importante ter em conta três momentos de leitura: “antes da leitura”, “durante a leitura” e “depois da leitura”. Nas aulas observadas, como se pode compreender pela visualização do seguinte quadro, concluímos que a realidade não é diferente, uma vez que todas as aulas transcritas apresentam esses três momentos de leitura.

Quadro 4 – Os momentos mais propícios à mobilização de conhecimentos

Aula

Quando é mobilizado o conhecimento

Antes

Durante

Depois

A

3

3

0

B

3

9

1

C

4

4

1

D

5

8

1

Total

15

24

3

Apesar de tudo, é importante realçar que, em cada aula, a distribuição das sequências por momento de leitura de texto se apresenta desigual. Desta forma, num total de 42 sequências com mobilização de conhecimento prévio em torno da leitura, 15 acontecem “antes da leitura”, 24 “durante a leitura” e 3 “depois da leitura”. Assim, podemos concluir que o momento de leitura textual mais propício à mobilização de conhecimentos prévios é o momento “durante a leitura” de texto.

Refira-se também que o momento “depois da leitura” é o que encerra menos sequências (apenas 3) com mobilização de conhecimentos prévios. Este facto pode estar relacionado com os principais objectivos do momento “depois da leitura” que se relacionam com a reflexão sobre o texto lido e com a busca de significado e importância para o texto. São, por isso, momentos em que o leitor está mais concentrado em fazer uma apreciação global do texto do que com intenções de o relacionar com o seu conhecimento prévio.

O momento “durante a leitura” foi o momento da aula em que ocorreram mais mobilizações de conhecimento prévio, na medida em que é nesta altura que se selecciona a informação mais relevante do que se compreendeu da mensagem de um texto e se faz uma análise das hipóteses levantadas antes do texto, que podem levar a confirmá-las ou a refutá-las. É, também, o momento mais apropriado para se estabelecerem relações, por exemplo, de intertextualidade, na medida em que, como diz Kristeva (1974: 64), “todo o texto se constrói como mosaico de citações, todo o texto é absorção e transformação de um outro texto”. Por isso, a intertextualidade, entendida como um diálogo de textos, encontra no momento “durante a leitura” a ocasião mais propícia para o estabelecimento de relações entre o texto concreto e os textos alojados nos schemata dos leitores. Só posicionando-nos numa perspectiva de intertextualidade, como refere Walty (2005), em que “cada texto constitui uma proposta de significação que não está inteiramente construída”, podemos concluir que o momento “durante a leitura” de textos é o momento mais propício à mobilização de conhecimentos.

No entanto, pareceu-nos estranho que o momento “antes” não fosse o momento com mais ocorrências de mobilização de conhecimentos prévios, na medida em que é o momento que propicia o uso de estratégias reflexivas e de preparação para o texto. Este é o momento de construir, por exemplo, uma inferência sobre um texto, olhando para o seu título ou para as suas ilustrações e relacionando esses elementos com o seu conhecimento prévio. Pode, ainda, ser o momento de realizar exercícios de preparação para conteúdos do texto, funcionando, assim, este como momento prévio à leitura, como uma preparação, como um refrescar de conhecimentos (subsunçores) para serem revisitados no momento de leitura propriamente dito

Dado que o “antes” é o momento de preparação que leva os alunos a chegar ao texto já com conhecimentos, isto é, entendido como o momento de criar condições para os alunos entenderem melhor o texto, seria expectável que este fosse o momento com mais ocorrências. No entanto, esta não parece ser a estrutura típica das aula de língua em análise, porque toda a compreensão de textos é quase sempre um acto de avaliação, para ver se os alunos compreenderam, e não tanto para treinar a compreensão. Daí, não encontrarmos tantos movimentos “antes” da leitura. Estes resultados vêm contrariar os estudos ou propostas pedagógicas sobre a leitura, em que se diz que o momento “antes” é um momento charneira para os alunos melhor compreenderem o que vêm a ler a seguir. Na realidade, na aula típica de Português, o momento “durante” é o momento onde ocorrem mais mobilizações de conhecimentos ainda que este momento trabalhe essencialmente ao nível das palavras, muito mais na linha de revisão da matéria dada, do que propriamente de movimentos de construção de sentidos.

4.3         O tipo de informação solicitada

Tendo como ponto de partida a ideia de que, durante a aula de Língua Portuguesa, vários são os conhecimentos que podem ser capitalizados, enquadrámos, inicialmente, os vários conhecimentos em duas categorias globais. Neste sentido, como referido no capítulo anterior, considerámos como “grandes” tipos de conhecimentos que podem ser mobilizados na aula de Língua Portuguesa: os “conhecimentos escolares” e os “conhecimentos extra-escolares”. O quadro seguinte mostra o número de ocorrências, por aula, de cada um destes tipos de conhecimentos.

 

Quadro 5 – Distribuição total das sequências por tipo de conhecimento mobilizado

Aula

Tipo de conhecimento mobilizado

Conhecimento   escolar

Conhecimento   extra-escolar do “mundo”

A

3

3

B

8

6

C

3

6

D

11

3

Total

25

18

Aqui, podemos verificar que de aula para aula não há uma regularidade na ocorrência destes dois tipos de conhecimento. No entanto, podemos aferir que o “conhecimento escolar” ocorre, por aula, entre 3 a 11 vezes, ao passo que o “conhecimento extra-escolar do mundo” ocorre apenas entre 3 a 6 vezes, o que mostra que, no total de aulas, o “conhecimento escolar” é 25 vezes mobilizado e o “conhecimento extra-escolar” é, apenas, 18 vezes mobilizado. Por outro lado, quer seja por coincidência ou não, realça-se o “número de ocorrência 3”, na medida em que ocorre quatro vezes (duas em “conhecimentos escolares” e duas em “conhecimentos extra-escolares”), o que pode ser considerado como a “moda” por aula e tipo de conhecimento mobilizado.

Relativamente à mobilização de “conhecimento extra-escolar”, pela observação das aulas, tornou-se evidente a preocupação com o saber enciclopédico extra-escolar dos alunos. Veja-se, pois, que a ocorrência da mobilização de “conhecimento extra-escolar” oscila entre as três e as seis sequências por aula, notando-se, no entanto, uma grande disparidade (o dobro) entre as aulas A e D e as aulas B e C. Na sua grande maioria, as mobilizações de “conhecimento extra-escolar” apresentadas, entendidas como o conjunto de conhecimento que não se pretende explicitamente que a escola ensine e que, por essa razão, não constituem conteúdo de nenhuma disciplina, são do tipo: descodificar o significado de uma palavra; interpretar uma determinada passagem do texto com base em experiências ou conhecimento pessoal; reflectir sobre contextos comuns de palavras ou frases e, ainda, relacionar o texto com vivências do dia-a-dia.

Quanto à mobilização de “conhecimentos escolares”, considerámos que os podemos dividir em: “conhecimentos intradisciplinares” e “conhecimentos interdisciplinares”.

Depois de analisadas as aulas, obtivemos os seguintes resultados.

Quadro 6 – Distribuição total das sequências por tipo de conhecimento mobilizado.

Aula

Tipo de conhecimento mobilizado

Conhecimento escolar

Conhecimento extra-escolar do “mundo”

Conhecimento   Intradisciplinar

Conhecimento   Interdisciplinar

A

3

0

3

B

6

2

6

C

3

0

6

D

11

0

3

Total

23

2

18

Como se pode verificar, de um total de 42 sequências que constituem o nosso corpus de análise, 24 apresentam mobilização de “conhecimento intradisciplinar”, sendo de realçar que uma das aulas (Aula D), encerra só em si 11 sequências com mobilização de conhecimento deste tipo, o que demonstra uma constante revisitação dos conteúdos e temas abordados na mesma disciplina, tornando a aprendizagem num processo espiralar. Quando observamos o programa de uma qualquer disciplina, percebemos que é esse mesmo o principal objectivo do Sistema Educativo: que cada ano lectivo seja o aprofundar e o ampliar do conhecimento do ano lectivo anterior e assim sucessivamente. Deste modo, a maior incidência da mobilização nos “conhecimentos intradisciplinares” parece-nos uma consequência do próprio processo de ensino-aprendizagem, demonstrando por parte dos professores uma preocupação e uma visão do ensino em “scaffolding” (*).

Pensamos, ainda, que o saber “intradisciplinar” pode ser dividido, neste estudo, essencialmente, em dois tipos: “conhecimento literário” e “conhecimento gramatical”. O quadro seguinte mostra a ocorrência, por aula, destes tipos de conhecimento prévio

Quadro 7 – Tipos de conhecimentos “intradisciplinares”

Aula

Tipo de conhecimento intradisciplinar

Conhecimento literário

Conhecimento gramatical

Outros tipos de conhecimento não generalizável

A

2

1

0

B

2

3

1

C

1

2

0

D

7

4

0

Total

12

10

1

Nestes resultados, podemos observar que não há uma grande disparidade entre a mobilização de “conhecimento literário” e de “conhecimento gramatical”, excepto na aula D, onde os “conhecimentos literários” são mobilizados mais três vezes que os “conhecimentos gramaticais”. Por outro lado, apenas um dos “conhecimentos intradisciplinares” foi integrado na categoria “Outros tipos de conhecimento não generalizável”, o que mostra que a mobilização de conhecimentos “intradisciplinares” tem quase sempre por objectivo, ou o reavivar de conceitos/conhecimentos relativos ao funcionamento da língua ou o de fazer relacionar textos literários.

Quanto ao “conhecimento interdisciplinar”, realçamos o facto de este ter sido o menos mobilizado, apresentando muito poucas ocorrências. De facto, este tipo de conhecimento foi mobilizado apenas duas vezes e, somente, numa das aulas (Aula B).

Em suma, segundo esta análise, a aula de Língua Portuguesa encontra-se mais aberta à mobilização de “conhecimentos intradisciplinares” e “conhecimentos extra-escolares”, em detrimento dos “conhecimentos interdisciplinares”, o que se traduz numa concepção de aula aberta ao “conhecimento extra-escolar” e ao conhecimento que a própria disciplina veicula ao longo dos anos de escolaridade, mas fechada às outras disciplinas que co-habitam o espaço Escola. No entanto, constatamos que o momento de compreensão de texto é muitas vezes pretexto para rever uma série de conhecimentos intradisciplinares dados em momentos anteriores.

4.4         Os objectivos da mobilização de conhecimentos

Neste momento da análise, não tivemos em consideração os movimentos de mobilização “autogerados”, uma vez que seria impossível falar com propriedade dos objectivos da mobilização dos alunos. Por esse motivo, foram, apenas, analisadas as solicitações dos professores, mobilizações “heterogeradas”, portanto.

O quadro n.º 8 dá conta dos principais objectivos da mobilização de conhecimentos prévios

Quadro 8 – Os objectivos da mobilização de conhecimentos.

Objectivos da mobilização de conhecimentos

Nº de ocorrências

Reflectir sobre o   funcionamento da língua

11

Alargar conhecimento e   experiências, reflectindo sobre um assunto

10

Alargar vocabulário

6

Relacionar textos

5

Relacionar autores

3

Relacionar personagens de   um texto lido anteriormente

3

Recordar o título da   unidade

1

Comparar contextos reais   com contextos imaginários

1

Reflectir sobre contextos   de frase

1

Segundo estes dados, o principal objectivo da mobilização de conhecimentos é o de “reflectir sobre o funcionamento da língua”.

Um outro objectivo frequente (ocorre em 10 sequências num total de 42) é o de “alargar as suas experiências e os seus conhecimentos através da reflexão sobre um dado assunto”.

“Alargar conhecimentos sobre o vocabulário” é o terceiro grande objectivo da mobilização de conhecimentos, contando 6 das 42 sequências analisadas.

“Relacionar textos” é, igualmente, um outro objectivo a alcançar, que conta, neste caso, com cinco ocorrências.

Na mesma linha de actuação, encontrámos, ainda, três sequências que pretendem fazer os alunos “relacionar autores estudados” anteriormente e três outras sequências pretendem “relacionar personagens” de um texto lido anteriormente com o texto da aula em análise.

Estamos, assim, perante exemplos de actuação em que a mobilização de saberes tem principalmente o fim de reflectir sobre o funcionamento da língua, alargar conhecimentos sobre um assunto, alargar vocabulário e recordar textos, personagens ou autores lidos anteriormente. Em última análise, estamos perante uma mobilização de conhecimentos que visam quer avaliar o conhecimento prévio dos alunos quer, efectivamente, através da mobilização de conhecimentos, promover a compreensão do texto.

Em suma, ensinar a ler parece ser pretexto para avaliação e revisão da matéria mais do que propriamente mobilização de conhecimentos para construir sentidos ou para dotar os alunos de recursos que eles possam, numa outra circunstância, ser associados ao que já conhecem.

5. Conclusão

A leitura é, sem dúvida, uma das competências que mais se trabalha nas aulas de Língua Portuguesa. O presente trabalho centrou-se, por isso, nesta competência nuclear da Língua Portuguesa.

Foi, para nós, um trabalho muito significativo, na medida em que, numa primeira fase, nos permitiu aprofundar o conhecimento de várias teorias sobre a leitura, de modo a podermos sustentar o nosso trabalho prático. Estas teorias suportam, assim, a nossa visão de leitura, que perfilha a ideia defendida por Quivy (2008:57), de que “ler um texto é uma coisa, compreendê-lo e reter o essencial é outra”. Numa segunda instância, foi, ainda, bastante enriquecedor porque nos permitiu olhar a leitura numa vertente mais prática, neste caso pela análise e observação de momentos de leitura de textos, em aulas videogravadas do 2º ciclo do Ensino Básico. Do amplo campo de trabalho que a leitura constitui, tomámos por opção centrarmo-nos na questão da relação de conhecimentos prévios durante a leitura de textos. Visto que encaramos a leitura como um processo interactivo que se vai tornando progressivamente mais autónomo, permitindo ao leitor, por um lado, participar na dinâmica do mundo e, por outro, permitindo-lhe um posicionamento face à realidade, decidimos igualmente focalizar a nossa atenção na interacção verbal das práticas escolares de leitura e analisar o modo como se consubstancia a relação dos conhecimentos do leitor com os novos conhecimentos que o texto veicula. Neste sentido, encaramos o momento de interpretação de texto na perspectiva de Sousa (1989a:17) “como um processo de construção do seu sentido in praesentia e a partir das contribuições de todos – professores e alunos”.

Escolhemos este objecto de trabalho, pois partilhamos a perspectiva da teoria da aprendizagem significativa, proposta por Ausubel (1966), pela qual a aprendizagem através da leitura é tão mais significativa quanto mais o aluno filtrar os conteúdos que têm significado para si e os relacionar com conhecimentos já anteriormente adquiridos. O presente estudo pretende, por isso, valorizar a mobilização de conhecimentos aquando da leitura na sala de aula, no sentido de levar os alunos quer à aprendizagem de conteúdos quer à compreensão progressiva de textos.

Com esta análise, verificámos que todas as aulas em análise partilham a concepção de que ler um texto envolve a mobilização de conhecimentos prévios no acto de leitura, embora em algumas das aulas essa relação acontecesse de forma mais sistemática do que em outras. Assim, pareceu-nos que, nas aulas em torno de textos poéticos, a mobilização de conhecimentos se tornou mais frequente. Para nós, este facto pode ter sido, apenas, só uma coincidência ou pode indicar já que o género de texto literário utilizado, no momento de leitura de textos, é factor do tipo de movimentos presentes na aula.

Verificámos, ainda, que, ao longo de todas as mobilizações de conhecimento identificadas, estas são quase sempre do tipo “heterogerado” (na verdade apenas duas são do tipo “autogerado”). Pese embora o significado pedagógico que a presença de movimentos “autogerados” pode ter no desenrolar de uma aula, a sua ausência é naturalmente explicada pela posição que tais movimentos têm na estrutura da interacção da aula – a posição de abertura que, sabemos, é generalizadamente da responsabilidade do professor. Este facto evidencia que o momento de leitura de textos e o consequente número de mobilização de conhecimentos é determinado maioritariamente pelo professor, não havendo, assim, espaço para a progressiva autonomização do aluno enquanto responsável pela construção do conhecimento, a quem se atribuí apenas o papel de “respondente”. Estes dados comprovam a preocupação do professor em ser um “questionador”, não dando espaço ao trabalho de desenvolvimento da verdadeira competência comunicativa que deveria ter o aluno como “estimulador” autónomo de comunicação.

Por outro lado, este foi um estudo que permitiu perceber que o momento “durante a leitura” é o momento onde mais se verificaram mobilizações de conhecimento prévio. Esta ocorrência mostra que a prática pedagógica, muitas vezes, não acolhe as propostas da investigação que, de há muito, vêm propondo o momento “antes da leitura” como o momento chave para criar condições para a compreensão do que os alunos vão ler a seguir. Portanto, a leitura de textos parece ser encarada, aqui, como um acto de avaliação do que os alunos leram, isto é, apenas com o fim de o professor verificar se os alunos entenderam o que leram, e não tanto para desenvolver a compreensão de textos. Parece, pois, que a mobilização de conhecimentos prévios, na aula típica de Língua Portuguesa, é encarada como o momento de trabalhar mais ao nível da significação das palavras, da revisão de conteúdos já leccionados, do que, concretamente, como modo para construir novos sentidos.

Neste entendimento, pareceu-nos, por isso, natural que o tipo de conhecimento mais mobilizado fosse o conhecimento “escolar” em detrimento do conhecimento do mundo “extra-escolar”. Com efeito, parece que os professores sentem uma necessidade de encarar a leitura como um momento propício para questionar, para relacionar com e sobre a chamada “matéria dada”. Neste quadro de funcionalidades, os conhecimentos escolares mais mobilizados foram os “intradisciplinares” e significativamente menos os conhecimentos de outras disciplinas (“interdisciplinares”), mostrando a grande preocupação dos professores em assegurar-se, no decorrer das aulas, que os alunos aprenderam todos os conteúdos leccionados anteriormente. Os momentos da leitura aproximam-se, assim, com muita frequência de momentos de “retroacção”, em vez de serem momentos de “avanço” e de crescimento. Tal preocupação parece estender-se a outros tipos de mobilização, por exemplo, a de conhecimentos “extra-escolares”, por meio dos quais os professores parecem quase sempre ter a intenção de resolver problemas imediatos de compreensão do texto em análise e não propriamente o intuito de a usar para aumentar os conhecimentos que os pequenos leitores já possuem. Em síntese, parece possível afirmar que, nas aulas em análise, a mobilização de conhecimentos tem quase sempre, mais como objectivo a revisitação dos conteúdos abordados anteriormente, como questões sobre funcionamento da língua ou questões sobre vocabulário, do que, propriamente, a mobilização de conhecimentos, com o intuito que lhe deveria ser igualmente dado: o de dotar os alunos de conhecimentos que fiquem armazenados nos seus schemata e de mecanismos que os ajudem a progressiva e autonomamente saber construir sentidos. Deste modo, estes momentos de mobilização de conhecimentos são movidos por questões que visam, da parte do professor, respostas muito específicas, tal como por exemplo “é um nome próprio!”, que não fomentam a verdadeira resposta pessoal e, portanto, necessariamente plural, mas antes a resposta única. Parece-nos, pois, que questões de inferência e de relacionação, quase nulas nas sequências em análise, levariam a criar progressivamente uma capacidade de leitura mais competente e significativa.

Ao contrário mesmo das propostas programáticas, cada vez mais orientadas para o desenvolvimento de estratégias de leitura, as sequências em análise mostram, na sua maioria, uma concepção de aula mais preocupada em ensinar determinados conceitos e determinados conteúdos declarativos do programa de Língua Portuguesa (e em revisitá-los constantemente), a partir de elementos que os textos possam conter, do que propriamente em promover a automatização daquelas. De facto, o caso de a escola privilegiar a revisitação constante de elementos já ensinados por ela mesma, em detrimento de utilizar a leitura como momento de ensino de estratégias de leitura, nega a situação pedagógica em si mesma.

Concluímos, portanto, que esta relativa uniformidade nos resultados obtidos nas quatros aulas em análise revela alguma “ritualização” dos comportamentos institucionalizados, sendo quase sempre idêntico o tipo de informação solicitada. Estes dados fazem-nos concluir que alguns aspectos textuais, que mesmo que considerados fundamentais para a compreensão do texto na sua macroestrutura, não são tidos em conta nestas abordagens textuais. Se tomarmos como referência o quadro conceptual desenhado por Lomas (2003) para os objectivos da disciplina de língua, diríamos que nas aulas em análise não parece haver uma preocupação em melhorar a competência comunicativa dos alunos, mas antes uma preocupação em desenvolver apenas a sua competência linguística ou gramatical. Tal como refere este autor (2003:15), e uma vez que as aulas analisadas tomaram os textos literários como seus objectos centrais, os objectivos da educação literária, nas aulas da escolaridade obrigatória, entre outros, deveriam ser a aquisição de hábitos de leitura e de capacidades de interpretação de textos, bem como o desenvolvimento da competência de leitura, que levará, em princípio, ao desenvolvimento da capacidade comunicativa. Nesta perspectiva, Lomas (2003:15) defende que

“a educação (…) literária deve favorecer, no máximo grau possível, o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos no uso dessa ferramenta de comunicação e de representação que é a linguagem e contribuir para o domínio das destrezas linguísticas mais habituais (escutar, falar, ler, entender, escrever) na vida das pessoas.”

Neste sentido, gostaríamos de deixar aqui, a título de sugestão, uma actividade possível para ensinar estratégias de leitura que levam ao desenvolvimento da competência comunicativa. Esta estratégia proposta por Richards (1992:200) e que pretende fomentar a inter-relação de conhecimentos chama-se, em tradução nossa, “Sim/Não… Porquê?… Isso faz-me lembrar…“ (“Yes/No… Why?… It Reminds Me Of…”) e é uma estratégia que traduz uma perspectiva de ensino que defende a produção por parte dos alunos de afirmações positivas e negativas (“Yes/No Stetements”), a partir das quais estes serão levados a relacionar conhecimentos prévios. Segundo este autor “A Yes statement reflects an idea in a paragraph that reader knows about, appreciates, or understands; a No statement reflects an idea in a paragraph that reader dislikes, disputes, or does not comprehend” (Richards, 1992: 200). Depois disto, o leitor deve justificar o porquê da sua frase (“Why moment”). É importante dizer que o que para um aluno funciona como uma frase do tipo negativo (No), para outro pode funcionar como uma frase do tipo positivo (Yes), uma vez que as opiniões de cada aluno vão variar consoante o seu conhecimento prévio. Note-se que devido ao facto de não existirem respostas correctas nem erradas, uma vez que estas são fundamentadas pelos conhecimentos prévios, os alunos demonstram bastante à vontade para as realizar, sem medo de errarem ou de serem censurados pela qualidade das suas respostas. Por outro lado, é importante referir que, esta estratégia pode funcionar em separado ou ser reforçada pela estratégia do “Isso faz-me lembrar” a qual é uma variação do formato anterior. Após a leitura de cada parágrafo do texto, os alunos relacionam a informação desse parágrafo com as suas próprias experiências anteriores. Tal como na primeira técnica referida, os alunos partilham as suas respostas com a turma. Após a exemplificação do professor, os alunos podem trabalhar em pequenos grupos partilhando mais tarde as suas ideias com o grupo turma. Posteriormente à familiarização com esta estratégia, o professor pode levar os alunos a relacionarem o texto com temas menos familiares, em vez de, simplesmente associarem vocabulário ou personagens. Este tipo de “scaffolding”, ajuda os alunos a pensarem nos textos de uma forma mais avançada contribuindo para a progressiva autonomização deste tipo de estratégias.

Podemos afirmar que utilizando este tipo de actividades, a leitura de textos na sala de aula pode adquirir novos sentidos e ser efectivamente factor de desenvolvimento de múltiplas competências, entre elas a da competência comunicativa. O principal objectivo da leitura de textos na aula não deve ser, assim, apenas, o de avaliar se o aluno compreendeu um dado escrito, como vimos acontecer predominantemente nas aulas analisadas, mas antes o ensino e a prática de estratégias para aprender a construir sentidos que os textos propiciam. Ainda, como refere Lomas (2003:15)

“a educação linguística e literária nas aulas deve contribuir sobretudo para (…) ajudar [os alunos] a saber fazer coisas com as palavras e, desta maneira, a melhorar a sua competência comunicativa nas diversas situações e contextos de comunicação”.

De facto, temos de concordar que a leitura na escola deve contribuir para o aperfeiçoamento da competência comunicação de que o recurso ao texto é pretexto e mote. Neste sentido, o leitor comunica, na tentativa de lhe atribuir significado pois, como diz Sousa (1989a: 19), “o texto só existe, só diz, quando o leitor lhe atribui significado; e ao fazê-lo, aquele atribui o «seu» significado.” Por consequência, o texto, enquanto objecto “aberto” à plurissignificação, permite a interacção entre a informação que veicula e a informação que o sujeito possui das suas vivências, discursos, vozes, ecos… Nestas circunstâncias, o momento de leitura de texto aproxima-se do discurso conversacional. Neste sentido, e segundo Sousa (1989a:20), o momento de leitura de texto, como momento de interacção, assume um carácter especializado, “em função da especificidade dos factores nele envolvidos e da forma da sua inter-relação”.

Por tudo isto, dizendo com Lomas (2006:81), o momento de leitura de textos é a oportunidade para

“alargar o leque de experiências de quem lê (…) através da indagação sobre alguns aspectos do mundo que, às vezes, permanecem invisíveis a um olhar convencional. A imensa maioria dos textos literários convida a um diálogo entre o mundo de quem lê e o mundo de quem escreve. A educação literária contribui, assim, tanto para a educação estética das pessoas, através da apreciação dos usos criativos da linguagem, como para a educação ética, na medida em que nos textos literários não encontramos apenas artifícios linguísticos, mas igualmente, estereótipos, ideologias, estilos de vida e formas de compreender (e de fazer) o mundo”.

Tais aprendizagens são essenciais e deveriam ser mais vezes revisitadas e ampliadas no momento de leitura de texto, nas aulas de língua.

Por tudo isto, gostaríamos, ainda, de salientar que o estudo que desenvolvemos poderá, em conjunto com vários outros estudos desta natureza, promover não só a reflexão sobre a prática de alguns docentes, tal como nos motivou, a nós, a fazê-lo, mas também o reajustamento, por exemplo, de algumas práticas escolares, no sentido de, efectivamente, se ensinarem estratégias de leitura (sendo a relação de conhecimentos utilizada nesse sentido) e não de utilizarem a leitura, apenas, como mote para outras aprendizagens.

É, no entanto, importante dizer que este trabalho, por si só, não constitui um instrumento suficiente para a alteração dessas práticas, mas constitui, apenas, um pequeno contributo nessa direcção. Este pretende ser um percurso, que aliado a outros, poderá ajudar a perceber como é que por meio do relacionamento de saberes prévios, com os textos, se aprende a ler. Como afirma Kramer-Dahl (2008:67), para além da dimensão estudada nesta análise, “connected learnings”, outras categorias, como a “intelectual quality” e a “explicit instruction” teriam de ser trabalhadas de forma prática, de modo a estudar de forma mais exaustiva a relação de conhecimentos na sala de aula, no momento de leitura de textos.

Em suma, este trabalho constitui, apenas, uma primeira fase de caracterização dos modos que a relação de conhecimentos toma no momento de interpretação de textos nas aulas, ficando para nós evidente que o que aqui apresentámos é apenas um dos vários aspectos que contribuem para a especialização e para a descodificação do processo de construção de sentidos na aula de Português.

 

 Bibliografia

 

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