A Escola: percurso histórico e redefinição de identidade
Para se compreender os desafios atuais da escola, assim como o papel do educador social nesta realidade, é necessário situá-la historicamente e refletir-se sobre as transformações que foi sofrendo.
A emergência do modelo escolar está ligada ao desenvolvimento da sociedade industrial e dos Estados Modernos, bem como ao conceito de infância (Nóvoa, 2014).
Nos seus primórdios, este modelo procurava responder a necessidades do sistema de produção capitalista. A escola garantia, por um lado, que eram «ministradas», às populações, as ferramentas necessárias para se integrarem e asseverarem o desenvolvimento produtivo; e, por outro lado, a difusão e consolidação das identidades nacionais, através das quais se estabelecia o garante da relação cidadão-Estado. O “Tempo das Certezas”, assim designado por Rui Canário (2008) na sua caracterização sobre os três momentos de desenvolvimento da escola, refere-se exatamente a esta correspondência entre as necessidades externas e a escola, bem como à interligação entre as diferentes dimensões da mesma.
Após a 2ª Guerra Mundial, o mundo conhece um período de forte expansão económica, no qual se desenvolveram grandes esperanças de igualdade e de justiça social, assumindo-se a escola como instrumento privilegiado de mobilidade social. Este período é recorrentemente denominado de “Os 30 gloriosos anos”, ainda que a expressão, no caso de Portugal, não conheça correspondência prática (Canário, 2008), já que se vivia um regime totalitário que impedia o país de se desenvolver ao mesmo ritmo de outras realidades europeias, que, nesta fase, além de viverem contextos de crescimento económico, apostavam no desenvolvimento do Estado-Social. Não obstante, é neste período que se assiste a um crescimento exponencial da escola e à sua massificação, sendo, por isso mesmo, designado por Canário (2008), de “Tempo das Promessas”. Neste período desenvolvem-se ainda teorias no plano científico sobre a importância da educação para os ganhos de produtividade, nomeadamente a Teoria do Capital Humano, cunhada por Theodore Schultz nos anos 60 (Olssen, Codd, & O´Neill, 2004).
Este período de expansão e de grandes expectativas relativas às promessas da escola esmorece gradualmente e percebe-se a “falência das promessas da escola” (Canário, 2008, p. 75). Veio a concluir-se que a escola, integrada no todo maior que é a sociedade, funciona como espelho desta, refletindo e reproduzindo no seu seio as desigualdades e injustiças nela presentes.
A teoria da reprodução cultural, presente nas obras de Bourdieu, veio explanar como:
A ação pedagógica reproduz o arbitrário cultural das classes dominantes ou dominadas. A ação pedagógica (institucionalizada) da escola reproduz a cultura dominante e, através desta, a estrutura de «relações de força» dentro de uma formação social, possuindo o sistema educativo dominante o monopólio da violência simbólica legítima (Stoer, 2008, p. 86).
Neste diagnóstico de “falência das promessas da escola” podemos integrar a denúncia de Althusser (Althusser,1980) sobre a escola enquanto «Aparelho Ideológico do Estado», bem como a reivindicação de uma «Sociedade sem Escolas» de Ivan Illich (Illich,1985). Luísa Cortesão (2005) fala ainda da incapacidade da escola em responder às dimensões determinantes para uma «boa» integração na sociedade:
E ela é assim posta em causa, porque se entende que “perde tempo” com propostas educativas que não são consideradas eficazes e rentáveis, que não dão a ênfase necessária à aquisição dessas competências agora consideradas muito importantes como, por exemplo, as competências técnicas. Ela é ainda criticada por não desenvolver preocupações com a competitividade e com atitudes pragmáticas em face do desempenho que seriam imprescindíveis para uma formação considerada de qualidade para o mundo atual (Cortesão, 2005, p. 32).
Este conjunto de críticas está relacionado com o terceiro momento definido por Canário (2008), como «Tempo de Incertezas». Este caracteriza-se pela vivência de uma fase contrária ao período de expansão do modelo escolar, já que não existe correspondência entre as necessidades externas e a missão da escola, nem harmonia entre as várias dimensões internas desta realidade. Por um lado, a escola já não é garantia de emprego nem de mobilidade social; por outro lado, as crises económicas do modelo capitalista têm remetido para a escola a resolução de problemas que ela não pode nem está preparada para responder.
Uma multiplicidade de fatores – a desvalorização da certificação escolar; a precariedade do mercado de trabalho; o aumento do desemprego, mesmo no seio das camadas da população mais qualificadas; a «crise» do estado social e o seu latente desmantelamento; a desvalorização dos professores e do seu trabalho – fez com que a escola desenvolvesse a sua missão – também esta em redefinição -, num estado crescente de complexificação. Aliada a esta crise de identidade e para ela contribuindo, crescem os problemas da violência entre pares, de insucesso, de abandono e de absentismo escolar.
As tentativas de responder a estes problemas, sentidos de forma mais absoluta em territórios socialmente deprimidos, têm também sofrido críticas e, muitas vezes, gerado efeitos contrários aos desejados, como é o caso dos Territórios Educativos de Intervenção Prioritária em Portugal (Canário, 2008). A este cenário, acresça-se o facto de serem imputadas, à escola, cada vez mais responsabilidades, nomeadamente nas áreas da educação sexual, ambiental, cidadania, prevenção de doenças e toxicodependência (Cortesão, 2005).
António Nóvoa, em entrevista a H. Pereira e M.C. Vieira (2006), utiliza a expressão “transbordamento” para ilustrar a acumulação de missões e conteúdos atribuídos à escola ao longo do tempo e que contribuíram para que, nas suas palavras, a mesma se encontre “esmagada por um excesso de missões e pela impossibilidade de as cumprir” (p. 115).
Uma das questões atualmente mais discutidas, prende-se com as premissas e as características de funcionamento do modelo escolar dominante. Assente na possibilidade de transmissão de conhecimento(s) em massa – ensinar muito, a muitos, de uma só vez -, este modelo centra-se no professor e em modos de exposição que possam ser ministrados ao mesmo tempo a vários educandos. Paulo Freire denuncia e critica, em várias das suas obras (eg. Freire, 1970/1987), este modelo de escola, que ignora e despreza os conhecimentos do educando e que fundamentalmente tenta depositar conhecimentos pela repetição e memorização, sem qualquer tipo de prática, crítica ou trabalho em conjunto.
Perante a crise do modelo escolar dominante, foram sendo desenvolvidas experiências e discutidas teoricamente formas alternativas de escola, emergindo, neste processo, o Movimento da Escola Nova. Sendo um movimento heterogéneo onde cabem vários atores e proposições, o mesmo pode ser definido, de acordo com Nóvoa (2014, p. 175), pela menção a quatro princípios “educação integral, autonomia dos educandos, métodos ativos e diferenciação pedagógica – e se lhe juntarmos a referência de Edouard Claparède (1920) à revolução copérnica que coloca a criança no centro, procurando assegurar uma educação à sua medida”.
O Movimento da Escola Nova estabeleceu as bases para que mais tarde surgisse o Movimento da Escola Moderna que, de acordo com Luís Santos (2003), agrupa três contribuições da filosofia pedagógica de Freinet: uma ideia de autoformação cooperada, acompanhada pela criação de um movimento de bases de professores; a expansão de uma ideia de escola democrática que garanta ensino para todos e não só para algumas classes; e “a produção das aprendizagens com intervenção direta dos alunos e circulação dessas aprendizagens entre todos e de modo a que envolvesse também a sociedade” (Santos, 2003, p. 68).
Em Portugal estes movimentos não vingaram. A rede pública de ensino, com todas as suas escolas, tende a funcionar com base nos mesmos modelos massificados, centrados no professor, baseados na repetição e cópia, assim como na desvalorização dos conhecimentos pré-existentes, como se as crianças fossem tábuas rasas ao chegar à escola e como se, enquanto ali permanecem, ficassem desligadas de tudo o que as rodeia (Canário, 2006). Não obstante esta realidade, é possível encontrar pelo menos uma escola em Portugal que, com um modelo pedagógico muito próprio, mantém o espírito da Educação Nova. Trata-se da Escola da Ponte.
A Escola da Ponte: “A escola com que sempre sonhei, sem imaginar que pudesse existir”(*)
A Escola da Ponte é uma escola pública que, desde 1976, tem desenvolvido um “sentido próprio”(*) para a educação. Esta Escola surgiu de uma reflexão crítica e do compromisso de todos os atores sociais com a mudança, sendo que atualmente abrange o ensino pré-escolar, o 1.º, 2.º e 3.º ciclos do ensino básico. José Pacheco, professor fundador da escola, enuncia os principais fatores que impulsionaram a mudança referida: “o isolamento face à comunidade de contexto, o isolamento dos professores, a exclusão escolar e social de muitos alunos, a indisciplina generalizada e agressões a professores, a ausência de um verdadeiro projeto e de uma reflexão crítica das práticas” (Pacheco, 2008, p. 12). Professores e pais juntaram-se, então, para resolverem problemas de ordem vária e, sobretudo, para fazerem uma escola nova que formasse “(…) pessoas e cidadãos cada vez mais cultos, autónomos, responsáveis, solidários e democraticamente comprometidos na construção de um destino coletivo e de um projeto de sociedade que potenciem a afirmação das mais nobres e elevadas qualidades de cada ser humano”(*) .
Durante mais de 30 anos, a Escola da Ponte esteve integrada na Freguesia da Vila das Aves, em Santo Tirso, desenvolvendo-se em profunda ligação à comunidade local. A título de exemplo, poder-se-á aludir que a Assembleia dos Alunos se realizou durante muito tempo no Edifício da Junta da referida Freguesia; alunos e professores participavam com alguma regularidade em atividades realizadas pela Junta de Freguesia; e a Responsabilidade Biblioteca não raras vezes coordenava o seu trabalho com o da Biblioteca de Vila das Aves. Em 2012, a Escola foi deslocalizada para a Freguesia de São Tomé de Negrelos, concelho de Santo Tirso, a cerca de sete quilómetros da sua anterior localização, num processo complexo e imposto pela tutela. Não obstante estar localizada nesta nova freguesia, as pessoas da Ponte mantêm uma profunda ligação a Vila das Aves, seja pela história e projetos partilhadas, seja pelo facto de uma grande parte dos alunos e alguns dos professores serem naturais e residirem em Vila das Aves. Embora esta ligação seja positiva, a mesma, a par de outros fatores, em particular o processo de deslocalização da escola, parece ser condicionadora de uma aproximação à realidade atual. O processo de deslocalização da escola, como referido anteriormente, foi complexo e conflituoso. Não só a comunidade educativa da Ponte se assumiu contra a decisão da Direção Regional de Educação do Norte, como também a comunidade de Negrelos se manifestou contra a vinda da escola para a vila, existindo, por parte desta, um conjunto de estereótipos e preconceitos em relação à mesma. A necessidade de criar novos laços de cooperação e de solidariedade com a comunidade local foram identificados tanto no Relatório de Avaliação Externa da Escola(*) , realizado em 2013, como no Plano de Melhoria(*) .
A Escola da Ponte é uma escola que se afasta do modelo tradicional de ensino, assumindo que se situa “num paradigma de racionalidade emancipatório” e que tem desenvolvido ao longo dos anos “referenciais organizacionais, pedagógicos e metodológicos, construídos numa cultura reflexiva que instituiu internamente e que fundamentou e fundamenta, a sua autonomia.”(*)
Na Escola da Ponte não existem turmas, nem anos, nem se responde à tradicional conceção de separação das crianças por níveis de conhecimento, enquadrados nos anos de escolaridade e nas turmas. Os professores, designados nesta realidade de orientadores educativos, não são depositantes de informação, como caracterizou Paulo Freire (1970/1987), já que não são os únicos detentores do conhecimento nem são o centro do que se passa ao longo do dia nos diferentes espaços educativos.
Os estudantes trabalham em conjunto, normalmente em grupos de quatro elementos. Não obstante esta organização grupal, é possível que cada estudante esteja a trabalhar sobre um assunto diferente. Quinzenalmente, negoceiam com os orientadores educativos, que escolhem como seus tutores no início de cada ano letivo, as matérias que pretendem estudar e aprender, assim como os objetivos para esse trabalho e sua avaliação.
Os orientadores educativos também se organizam em grupos, neste caso por dimensão educativa, e vão-se reunindo ao longo do ano para discutirem e trabalharem coletivamente o que irão desenvolver. São cinco as dimensões educativas trabalhadas: Artística, Lógico-Matemática, Naturalista, Linguística, Identitária, Pessoal e Social.
Como não existem aulas ou turmas e os espaços são de área aberta, o que se encontra na Escola da Ponte são os espaços do: Pré-escolar, Núcleo da Iniciação, Núcleo da Consolidação e Núcleo do Aprofundamento. Nestes espaços normalmente encontram-se entre cinco a oito orientadores de diferentes áreas de formação, os quais vão percorrendo os grupos, procurando apoiar e orientar o trabalho individual de cada aluno. Saliente-se que o recurso ao orientador é, por princípio, sempre a última solução. Antes, privilegia-se a investigação autónoma e a ajuda entre pares, já que se reconhece, à semelhança de Vygotsky (1978), o papel de mediador desempenhado pelos alunos mais capazes. Os grupos, visando uma aprendizagem colaborativa, integram, assim, crianças em diferentes níveis de aprendizagem, mas próximas na capacidade de resolver tarefas e problemas, compreender e interiorizar conteúdos de ordem vária, construir conhecimento.
Existem outros elementos originais e muito próprios que foram sendo construídos e postos em prática pela comunidade escolar, como murais de índole diversa. Através dos murais “Eu posso ajudar” e “Eu preciso de ajuda”, quem já sabe sobre um assunto disponibiliza-se a apoiar um colega em dificuldade, e, através do mural “Eu já sei”, pode propor a avaliação dos seus conhecimentos. Os murais do “Acho bem” e do “Acho mal” são também recursos para melhorar o trabalho, a convivência, a escola. Nestes, tanto podem ser observados aspetos positivos como menos positivos sobre o trabalho dos diferentes atores, assim como sobre os espaços, questões materiais, entre outros aspetos.
Como referido anteriormente, na Ponte não existem aulas. O que existe é tempo de trabalho, organizado de forma a não sobrecarregar os estudantes e a integrar vários aspetos da sua formação integral, enquanto cidadãos. À sexta-feira é dia das “Responsabilidades”. Estas consubstanciam-se em grupos de trabalhos e de tarefas que contribuem para fazer a escola funcionar o mais adequadamente possível e com a participação e envolvimento de todos nas tomadas de decisão. Exemplo de algumas “Responsabilidades” são o Jornal “Dia-a-dia”, a Biblioteca, Datas e Eventos, Correio e Visitas, Terrário e Jardim, Computadores e Música, Jogos de Mesa e Recreio Bom.
À sexta-feira reúne-se, ainda, a Assembleia, escolhida pelos estudantes no início de cada ano. A Assembleia é o órgão representante dos alunos, onde os mesmos discutem atividades, necessidades e problemas, e decidem o que fazer. Nela participam todos os alunos, inclusive os mais pequenos do ensino pré-escolar, os quais podem dar igualmente a sua opinião e apresentarem trabalhos que vão fazendo. Os orientadores educativos, funcionários, pais e visitantes têm um tempo próprio em cada Assembleia para falarem, mas este espaço é, na sua essência, dos estudantes.
Nesta escola, cada ato é encarado como uma oportunidade de crescimento, aprendizagem e compromisso, e todos os momentos são potenciadores do exercício de cidadania e democracia. Autonomia, responsabilidade, solidariedade e compromisso são aprendidos, porque vividos, no quotidiano desta realidade escolar.
A vivência do dia-a-dia assenta, ainda, no pressuposto de que todos se devem sentir bem e confortáveis. A Ponte não tem problemas de bullying, não tem problemas de violência, as crianças não levam as mochilas carregadas às costas (porque os livros estão e ficam na escola), os intervalos são passados a ouvir música, jogar jogos, num decibel abaixo do que se passa normalmente em outros contextos. Pedir a palavra na Ponte é mais um elemento de aprendizagem de como estar e ser em sociedade. Um aluno entra no espaço e coloca o dedo no ar. Em segundos, a sala vai silenciando para que este se possa dirigir a todo o grupo. É assim incentivada uma cultura de comunicação com regras, percebendo a importância: do saber ouvir; de saber esperar pela sua vez e não interromper; de saber falar e expressar a sua opinião. No fundo, uma cultura de participação responsável.
Os pais da Escola da Ponte podem entrar e circular nos espaços livremente, sem avisar previamente. É comum, quando trazem os filhos, ficarem mais um pouco, para assistirem a uma apresentação oral dos mesmos ou para falarem com os orientadores ou o orientador tutor. Estas dinâmicas vão permitindo a edificação de uma relação de progressiva proximidade, essencial a uma partilha mais natural e regular entre ambos os sistemas.
A Associação de Pais cumpre aqui também um papel muito importante, já que nela se discutem problemas, necessidades e atividades relevantes desta realidade, e se promove o envolvimento e a participação dos pais na resolução das questões em foco.
Por fim, é de salientar que a Escola da Ponte é uma escola aberta. Ao longo da sua história tem aberto as suas portas a quem a queira conhecer e tem-se aberto a novos olhares e desafios, em concordância com os princípios e os valores que a consubstanciam. O projeto que a seguir se narra decorre de uma experiência de estágio de Educação Social desenvolvida no ano letivo de 2013/2014.
O projeto de Educação Social Escola para quê e para quem? Redescobrindo sentidos comunitários
Um projeto de educação social deve almejar sempre a transformação da realidade. O quadro teórico, metodológico e ético dos educadores sociais implica, por princípio, que a intervenção social: seja reflexiva; tenha a capacidade de se pensar e corrigir durante o seu desenvolvimento; reconheça as pessoas como atoras e autoras da sua realidade; se fundamente e desenvolva na base da participação; vise a educação, o empoderamento e a emancipação de todos os intervenientes (eg., Baptista, 1998; Carvalho & Baptista, 2004; Timóteo & Bertão, 2012; Veiga & Correia, 2009).
O projeto Escola para quê e para quem? Redescobrindo sentidos comunitários foi, de acordo com os princípios supracitados, um projeto de intervenção, de base reflexiva, por todos participado. Tendo sido um projeto enquadrado na metodologia de Investigação ação participativa, a questão da avaliação assumiu-se como elemento determinante para, como refere Monteiro (1996), balizar a ação, imprimir uma prática reflexiva e co construtora do projeto. O modelo CIPP, de Stufflebeam e Shinkfield (1995), foi a opção mobilizada, já que neste a avaliação surge como instrumento de enriquecimento da intervenção social e garante da construção de um sentido partilhado para o projeto e não apenas como mecanismo de aferição de resultados finais.
Assim, a partir da voz de alunos, orientadores educativos, pais e funcionários, bem como da consulta do relatório de Avaliação Externa e do Plano de Melhoria, percebeu-se, como se explicitou anteriormente, que a comunidade educativa manifestava, de forma geral, um desconhecimento da nova realidade – a freguesia de S. Tomé de Negrelos -, assim como algumas dificuldades e resistências em perspetivar a sua integração na mesma. Deste modo, foi identificada como grande necessidade, a afirmação do projeto educativo da Escola da Ponte na comunidade local, com vista a melhorar a sua ação educativa e a potenciar o desenvolvimento local.
Como potencialidades e recursos do contexto foram identificadas e valorizadas sobretudo: a) A participação ímpar de todos os membros da comunidade escolar na resolução dos problemas e na concretização dos objetivos inscritos no projeto educativo da escola; b) O comprometimento e a apropriação dos membros da comunidade escolar do projeto educativo e dos objetivos da escola; c) Os espaços de discussão e os dispositivos pedagógicos da escola que permitem que todos os membros da comunidade escolar participem ativamente nas realizações quotidianas.
A Escola Cidadã na cidade educadora: finalidade e objetivos de intervenção
Identificados o problema e a necessidade mais prementes a trabalhar, assim como os recursos e as potencialidades da Escola da Ponte, perspetivou-se o desenho do projeto de Educação Social. O mesmo foi orientado em torno da relação possível entre Escola Cidadã(*) e Cidade Educadora(*) , já que a integração e o desenvolvimento do projeto educativo da Ponte em profunda ligação com a nova comunidade local, permite a aproximação entre o que são os grandes compromissos das nações e as concretizações locais.
Temos uma Escola Cidadã e uma Cidade Educadora quando existe diálogo entre a escola e a cidade. Não se pode falar de Escola Cidadã sem compreendê-la como escola participativa, escola apropriada pela população como parte da apropriação da cidade a que pertence. Nesse sentido Escola Cidadã, em maior ou menor grau, supõe a existência de uma Cidade Educadora. Essa apropriação se dá por meio de mecanismos criados pela própria escola, como o Colegiado Escolar, a Constituinte Escolar, plenárias pedagógicas e outros. Esse ato de sujeito da própria cidade leva para dentro da escola os interesses e necessidades da população.
Esse é o “cenário” da cidade que educa no qual as práticas escolares possibilitam qualificar o entendimento freireano tanto da leitura da palavra escrita como da leitura do mundo. A cidade que educa não aponta para soluções imediatas, mas para uma compreensão mais analítica e reflexiva, seja em relação aos problemas do cotidiano ou aos desafios do mundo contemporâneo (Gadotti, 2006, p. 135).
Tendo como finalidade “Promover a construção da Cidade Educadora”, os objetivos gerais (OG) do projeto foram os seguintes: OG 1. “Problematizar e refletir sobre a raiz comunitária do projeto educativo da escola”; OG 2. “Dar-se a conhecer e conhecer a comunidade local”. Como objetivos específicos (OE), definiu-se que os múltiplos agentes da escola fossem capazes de: OE 1.1. Identificar o papel da escola na comunidade; OE 1.2. Equacionar mudanças a fim de o projeto da Escola ser desenvolvido no seio e em prol da comunidade local; OE 2.1. Propor iniciativas de abertura da Escola à comunidade; OE 2.2. Aderir a iniciativas propostas pela comunidade.
O projeto em desenvolvimento
O projeto, pensado e negociado com todos os intervenientes, integrou duas ações interdependentes. A primeira, respondendo ao primeiro objetivo geral, pretendia proporcionar condições para uma reflexão co construída sobre a comunidade, o papel da escola na (nova) comunidade e as formas para um trabalho educativo fundamentado na (nova) comunidade local; a segunda, respondendo ao objetivo geral dois, visava a operacionalização dos resultados da reflexão realizada, em que se pretendia que a comunidade educativa da Ponte fosse capaz de encetar e envolver-se em algumas iniciativas e atividades para se dar a conhecer e conhecer a comunidade de S. Tomé de Negrelos.
No sentido de responder ao primeiro objetivo, concretizaram-se seis debates com alunos, pais, orientadores educativos e funcionários. Estes contaram com a participação de cerca de 160 pessoas no total e ficaram pautados pela riqueza e variedade de assuntos abordados dentro do tema, assim como pela pertinência e adequação das intervenções e propostas dos intervenientes.
Para preparar o debate com os alunos, foi pedido aos orientadores que, uns dias antes, solicitassem aos mesmos uma pesquisa prévia sobre duas questões essenciais: o que é a comunidade e qual o papel da escola na comunidade. Os formatos de debate foram adaptados ao nível de complexidade exigido por cada núcleo e foram tidos em conta os espaços de discussão e os dispositivos pedagógicos da escola, nomeadamente, o recurso às Responsabilidades e à Assembleia de Alunos.
No Núcleo da Iniciação, por exemplo, os alunos no final do debate fizeram desenhos sobre a comunidade e cartazes, que afixaram nos murais para que pudessem ser preenchidos com propostas sobre como dar a conhecer a escola à comunidade e como conhecer a comunidade, mantendo a ponte entre os objetivos do projeto.
Imagem 1. Colagem e desenhos feitos pelos alunos do Núcleo da Iniciação sobre a comunidade.
Imagem 2. Cartaz afixado no Núcleo da Iniciação com vista à recolha de propostas dos alunos para um maior e melhor conhecimento da comunidade local.
Já no Núcleo da Consolidação, o debate levou à discussão de conceitos como democracia, desenvolvimento, cidadania, passando pela história contemporânea portuguesa sobre a ditadura em Portugal.
Em relação aos pais, foi possível, com a Presidente da Associação de Pais, planificar o debate, tendo ficado definido que este aconteceria numa das reuniões mensais para potenciar a participação do maior número de pais e encarregados de educação.
Imagem 3. Convite aos Pais para participarem no debate.
Os debates com os orientadores educativos e com os funcionários da escola contaram com todos os seus elementos, sendo que, no caso dos funcionários, foi necessário dividir o grupo em dois, para que todos pudessem participar sem prejudicar o trabalho normal.
Tanto no debate com os pais como no debate realizado com os orientadores educativos e os funcionários, a Carta das Cidades Educadoras, ligada aos objetivos do projeto, serviu de introdução à discussão.
Em todos os debates realizados, alunos, pais, orientadores educativos e funcionários envolveram-se ativamente e mostraram como percebem a utilidade de se trabalhar em cooperação e denotou-se, desde logo, predisposição para encetar um caminho de estabelecimento, desenvolvimento e estreitamento de laços com a nova comunidade.
A par da realização dos debates, e também no âmbito destes, recolheram-se propostas sobre formas de melhor conhecer a comunidade local e de, com esta, desenvolver o projeto educativo da escola. No Núcleo da Iniciação, como referido, a recolha das propostas foi realizada a partir dos cartazes afixados nos murais das salas; já nos Núcleos da Consolidação e do Aprofundamento, esta recolha aconteceu logo após o momento de debate, tendo sido feita a partir do preenchimento individual de um questionário aberto.
Fruto deste primeiro momento de reflexão, foi possível recolher mais de trinta propostas concretas de atividades a desenvolver na e com a comunidade local, as quais foram agrupadas num flyer criado para o efeito e entregue ao Conselho de Gestão da Escola e à Assembleia de Alunos. O envolvimento de todos os elementos da comunidade educativa, assim como a diversidade e a pertinência das propostas são reveladores do empenho e do compromisso de todos com a mudança.
Imagem 4. Flyer das propostas recolhidas no âmbito do Projeto Escola para quê e para quem? Redescobrindo sentidos comunitários.
Tendo por base o segundo objetivo geral, foi possível definir e desenvolver algumas atividades muito concretas. Recuperando uma atividade que a escola costumava fazer em Vila das Aves, procedeu-se à distribuição do Jornal da Escola “Dia-a-dia” pelo comércio e instituições locais, permitindo não só a divulgação das atividades que a escola desenvolve e o seu projeto educativo, bem como um maior conhecimento, por parte dos alunos envolvidos nesta atividade, da Freguesia de São Tomé de Negrelos; no âmbito da Responsabilidade “Biblioteca” e da sua atividade “Quinzena da Leitura”, alunos e orientadores educativos organizaram a iniciativa “Chá com Livros”, na Junta da Freguesia, onde leram para os trabalhadores da mesma; os alunos do pré-escolar puderam visitar e conhecer a vila e o comércio local. Estas iniciativas, vividas com entusiasmo e sentidas como pertinentes pela comunidade escolar, foram bem acolhidas por parte da população e das instituições locais, que mostraram curiosidade e interesse em visitarem a escola futuramente e com ela estreitarem laços. Existiu, por fim, uma reunião entre a Associação de Pais e o Presidente da Junta de Freguesia, onde ficou o compromisso de dirigentes associativos, comerciantes e outras personalidades locais realizarem uma visita à Escola no ano letivo seguinte.
Findo o projeto, procedeu-se à sua avaliação final. Além de indicadores quantitativos – como o número de debates, participantes e propostas realizadas –, foram tidos em consideração indicadores de índole qualitativa: sentido(s) e impacto do projeto para os participantes e para a Escola. No que concerne ao primeiro objetivo geral e seus objetivos específicos, poder-se-á afirmar que os mesmos foram alcançados, já que os diferentes atores sociais reconheceram que foram capazes de problematizar o papel e o sentido da escola na comunidade, assim como perspetivar uma multiplicidade de atividades concretas a desenvolver na mesma. Não obstante, dado que estar e viver-se em comunidade é um desafio constante, a reflexão continuada sobre a inter-relação escola-comunidade deve ser, de acordo com os participantes, um objetivo sempre presente. Em relação ao segundo objetivo geral, o mesmo foi parcialmente alcançado. Ainda que se possa considerar que o OE 2.1. foi conseguido, tendo em conta as iniciativas desenvolvidas pela Escola na Comunidade e seu impacto na edificação de laços entre as duas realidades, o mesmo poderia ter sido e terá de ser mais trabalhado. Além disso, o segundo objetivo específico não foi concretizado, já que, apesar de ter havido algumas oportunidades, a escola acabou por não participar em nenhuma iniciativa da comunidade de São Tomé de Negrelos no ano letivo em que o projeto decorreu, ficando a sua participação perspetivada para ações comunitárias futuras.
Conclusão
Num contexto como a Escola, o educador social deve agir em profunda ligação com os restantes atores – sejam eles professores, pais, alunos ou funcionários -, procurando, não só, encontrar espaços para a melhoria do quotidiano da comunidade educativa, como também contribuir para a co construção de novas formas de pensar a escola e de nela se viver.
A integração e o trabalho do educador social num contexto como a Escola da Ponte acaba possivelmente por gerar mais desafios no encontro de um espaço próprio da educação social do que noutros contextos, já que esta escola, em muitos aspetos, é um espelho dos princípios e valores profissionais da educação social. Questões como a participação, o trabalho coletivo em respeito por todos, o exercício da democracia, a autonomia das pessoas e a sua responsabilidade, são assumidas como essenciais pela comunidade educativa da Escola da Ponte e estão presentes em todos os momentos da vida escolar. Este acabou por ser o maior desafio da experiência de trabalho na Escola da Ponte e que corresponde a uma questão que, não raras vezes, surge no decorrer da formação dos educadores sociais, a qual se prende com a relevância de uma profissão cujo desenvolvimento histórico esteve sempre ligado às margens da sociedade e às exclusões, em contextos onde, à partida, os direitos e o exercício de cidadania não estão assegurados. O projeto em apreço neste artigo veio, todavia, mostrar como é possível e útil a integração dos educadores sociais mesmo em contextos privilegiados, do ponto de vista da caracterização das suas práticas emancipatórias, até porque o exercício da democracia e da cidadania é sempre um exercício inacabado e em contínuo desenvolvimento e aprofundamento.
O olhar externo da educação social, desde o início comprometido com a escola e o seu quadro de valores, foi essencial para que a comunidade educativa se centrasse num problema premente que a estava a afetar e se envolvesse na sua resolução. Um dos principais ganhos que o projeto Escola para quê e para quem? Redescobrindo sentidos comunitários trouxe, prendeu-se com a possibilidade de concretização de espaços e tempos próprios em que a escola, com todos os seus intervenientes, pudesse olhar para si própria, encetando um processo de reconhecimento das suas origens e de confronto com os desafios que se lhe colocam enquanto Escola Cidadã numa Cidade Educadora. O seu desenvolvimento, constantemente refletido e avaliado, potenciou uma profunda reflexão coletiva sobre a nova realidade vivenciada e a concretização de alguns passos, entre tantos perspetivados, em prol da mudança ambicionada.
Ainda que a operacionalização de uma aproximação da escola à comunidade de S. Tomé de Negrelos pudesse ter ido mais longe, sementes foram lançadas para um desenvolvimento efetivo do projeto educativo da Ponte em interligação e comprometimento com a comunidade local. Num futuro próximo, dever-se-á almejar o envolvimento e a participação da escola em iniciativas da Comunidade assim como da Comunidade em iniciativas da escola, sendo que as ou algumas das propostas equacionadas, que foram coletivamente pensadas e negociadas, poderão e deverão ser implementadas, e outras tantas, decorrentes da reflexão continuada sobre a inter-relação escola-comunidade, poderão ser perspetivadas e desenvolvidas.
Nem a escola cidadã nem a cidade educadora propõem soluções imediatas, mas, como refere Gadotti (2006, p. 135), “uma compreensão mais analítica e reflexiva” em relação ao dia-a-dia e ao mundo. Foi neste sentido que o projeto em apreço se orientou, na construção passo a passo de uma compreensão mais reflexiva sobre o papel da escola na comunidade, compreensão essa que se foi construindo coletivamente e que, por isso, se acredita que será o próprio garante da sua consolidação e de mudanças futuras.