I. Introdução
As doenças mentais são uma das maiores causas de incapacidade e mortalidade (Kessler et al., 2009), representando em Portugal cerca de um quinto da população (Wang et al., 2011). Em comparação com a população em geral, as pessoas com doenças mentais são mais afetadas por outras comorbilidades médicas, como por exemplo o aumento do risco cardiovascular, e preocupações socioeconómicas, tais como dificuldades de acesso a emprego e habitação, o que contribui para reduzir significativamente a expectativa e qualidade de vida (Druss et al., 2011).
Dentro das doenças mentais, a Esquizofrenia é a que parece estar associada a um maior grau de incapacidade e os custos sociais e económicos que lhe estão associados são mais elevados (Knapp, Mangalore, & Simon, 2004). Esta patologia caracteriza-se por sintomas positivos (ex. alucinações e delírios), sintomas negativos (ex. abulia, apatia) e por défices neurocognitivos (ex. atenção, memória, velocidade de processamento), que provocam um grande comprometimento funcional (Tandon, Nasrallah, & Keshavan, 2009; Kahn & Keefe, 2013). Este comprometimento afeta a capacidade destas pessoas se envolverem na autogestão da sua doença e na utilização dos recursos da comunidade (Fagiolini & Goracci, 2009), contribuindo igualmente para o aumento do risco de suicídio (Pompili et al., 2008), taxas elevadas de internamentos e uso de cuidados hospitalares (Simone et al., 2013). Estas preocupações são ainda mais exacerbadas porque este público recebe muitas vezes cuidados de saúde insuficientes e/ou desajustados (Druss et al., 2002). Além disso, as pessoas com Esquizofrenia frequentemente não estão motivadas para o tratamento, o que se pode traduzir num pior prognóstico, devido à falta de adesão farmacológica ou abandono dos cuidados de saúde mental (Lehner et al., 2007).
Uma outra barreira à funcionalidade, qualidade de vida e bem-estar é o estigma público e o autoestigma. O estigma público refere-se à reação negativa, depreciativa e discriminativa da população em geral relativamente às pessoas com Esquizofrenia (Corrigan et al., 2008); Corrigan e colegas (2003) referem que o estigma é a expressão social do desempoderamento, pois promove a expetativa, quer nas comunidades em geral, quer nas pessoas com Esquizofrenia, de que estas são incapazes de assumir responsabilidades e viver independentemente.
Ao longo dos últimos anos, assistiu-se a uma desmistificação da incapacidade generalizada das pessoas com Esquizofrenia e do carácter crónico associado à doença, e atualmente, estas pessoas são vistas como mais capazes de tomar decisões e de desempenhar um papel mais ativo e produtivo na sociedade (Davidson et al., 2006; Franke et al., 2010; Moreira & Andrade, 2003). Ainda assim, o estigma continua a diminuir as oportunidades de recuperação das pessoas.
De acordo com o Empowerment Model of Recovery (Ahern & Fisher, 1999), a recuperação ocorre através de um processo de fortalecimento pessoal, da assunção do controlo das pessoas sobre as decisões importantes que afetam a sua vida e da participação na vida das suas comunidades, através da (re) aquisição de papéis sociais significativos ao nível do Desta forma, a recuperação tem também uma dimensão social e política, para além da pessoal, implicando a reclamação da igualdade de oportunidades, dos direitos civis e da cidadania. Para Marques (2007), o conceito de recuperação é multidimensional e consiste num processo que possibilita às pessoas com doença mental maximizar a esperança relativamente ao futuro, envolver-se em atividades significativas e desenvolver a autodeterminação, integrado na sociedade sem sofrer efeitos de estigma e discriminação. A recuperação de um indivíduo pode ser expressa de forma mais evidente a partir de mudanças tais como a diminuição de sintomas e o aumento da frequência de socialização (Liberman & Kopelowicz, 2005), bem como em domínios mais subjetivos tais como a perceção de qualidade de vida e a (re)descoberta de um projeto de vida (Resnick, Fontana & Lehman, 2005).
Nesse sentido, os objetivos gerais do tratamento devem ser não só a redução da frequência e intensidade da sintomatologia, mas também melhorar a capacidade funcional e a qualidade de vida das pessoas com doença mental. Assim, de acordo com a investigação durante as últimas décadas, a necessidade urgente de cuidados multimodais tem continuado a aumentar. Os serviços devem facilitar o acesso e promover a plena participação das pessoas nos contextos naturais da comunidade, respondendo às necessidades e prioridades de cada uma das pessoas, estimulando a interação das pessoas com e sem doença mental nos contextos comunitários tornando as comunidades mais recetivas e inclusivas (Kloos, 2005).
Tendo em conta o supracitado, urge implementar estratégias que potenciem e facilitem a participação ativa, o envolvimento dos utentes em todas as fases do seu processo de reabilitação e em tudo o que diz respeito às suas vidas. Estas estratégias devem incorporar uma filosofia que permita combater o estigma, o auto-estigma e mudar crenças, assumindo que a recuperação depende em larga escala do empoderamento e autodeterminação das pessoas com doença mental.
II. O Papel das Artes Visuais e Tecnológicas na Doença Mental
O campo de conhecimento artístico engloba a produção, os seus processos, a compreensão e a interpretação. É conhecimento que não separa teoria da prática onde Fazer é Compreender. Assim, a arte, mobilizada para a ação educativa em contextos deliberadamente organizados, permite um exercício intelectual que pensa com as mãos. Envolve o uso e a modificação de símbolos e sistemas de símbolos e envolve perceção e criação. As aprendizagens artísticas possibilitam aprender técnicas e modos de fazer, criar e construir. Implicam o prazer de fazer, de sentir, de compreender, de expor e de refletir.
A propósito desta relação entre o homem e o mundo, entre a cultura vivenciada e os valores a si associados, na nossa perspetiva, quer a Arte, quer a Educação são fundamentais para que os processos psicossocial e cognitivo cumpram o seu compromisso com a socialização.
Interessa-nos particularmente, neste projeto, a posição assumida por autores como Eisner (2008) ao valorizarem a experiência com o mundo empírico, com a cultura e a sociedade particularizada pelo processo de gerar significados e pelas leituras pessoais, uma vez que consideram que a educação é mediada pelo mundo em que se vive, pela cultura, linguagem, crenças e valores.
Autores como Read (2013), Lowenfeld & Brittain (1970), Eisner (2002) são também fortes contributos para a afirmação do papel social da arte e ajudam-nos a perceber qual o seu verdadeiro impacto na qualidade de vida de grupos de pessoas com problemas de saúde mental.
Read (2013) destaca a ligação das potencialidades da arte à educação dos sentidos que se reflete no contexto da nossa intervenção, quer na procura do desenvolvimento de capacidades transversais, projetadas pelo que somos no nosso dia-a-dia, quer na procura das singularidades que poderão valorizar a individualidade de cada um perante a comunidade, e que se refletem, também, no modo como nos relacionamos com o mundo, não só na forma como selecionamos e nos rodeamos de objetos, mas também na escolha das palavras que utilizamos para comunicarmos.
Outros autores são guias essenciais para o desenho deste projeto, Read (2013) e Lowenfeld & Brittain (1970), para quem a individualidade não equivale a um estado de isolamento, uma vez que o ato isolado deve estar incluído num processo de integração social, ou seja, que se faz através da partilha do saber e da experimentação em conjunto, nomeadamente, via a consciencialização dos valores emocionais das experiências de cada indivíduo. Tais experiências permitem a cada um desenvolver a capacidade de exteriorizá-las através da utilização do grafismo, do gesto, da palavra, etc..
O contributo de Arnheim (1971, 1986) para o desenho deste projeto parte da valorização da perceção visual pelo seu carácter cognitivo, ou seja, a referida valorização parte da capacidade de invenção e realização do objeto artístico como possível fator de mudança pessoal. As experiências percetivas que propõe são a base da sua teoria do pensamento visual e demonstra que nos processos fundamentais da visão estão envolvidos mecanismos de raciocínio e, por isso, considera que percecionar é já um ato de pensamento em termos visuais. Arnheim (1971, 1986) defende, neste sentido, que o exercício do pensamento visual levar-nos-á a desenvolver a capacidade de resolução de problemas em qualquer atividade humana. Também Eisner (2008b) valoriza a criatividade em todas as facetas da vida humana, pela implicação da experiência e de valores emocionais, no sentido de “o ponto de vista desta ideia pedagógica é dar conta de que, ao alterarmos uma forma de um objeto ou de um evento, é a qualidade de vida que alteramos” (Eisner, 2008b, p.2).
Através da implementação de projetos de extensão comunitária poderá ser promovida a criatividade e a participação que são vistos como facilitadores nos processos de mudança. Trata-se, pois, de um processo de responsabilização que implica a redefinição do conceito da experiência artística vivenciada, fruída e/ou experimentada, no sentido de desenvolver o pensamento e a capacidade de sentir através da mobilização dos conhecimentos que cada indivíduo traz consigo na procura de uma Cultura Visual, uma vez que é na apropriação desta cultura visual que residem os momentos de igualdade social.
Assim, como tivemos oportunidade de constatar, a literatura leva-nos a tornar central a experiência artística e a considerar o processo em que esta ocorre como o fator determinante para o reforço do prazer da descoberta, entendido, neste contexto, como uma recompensa. Esta será uma das grandes motivações para continuar e, com toda a certeza, será um passo para integrar. Pelas suas particularidades, a criação e a educação artística têm vindo a ser estudadas por muitos autores pelas suas potencialidades em pessoas que sofrem de doença mental, procurando com essas experiências proporcionar a esta população uma maior qualidade de vida.
Relativamente à arte, e apesar de receber pouca atenção por parte da literatura, há evidência de que também esta tem um papel importante na promoção da saúde mental, bem-estar, recovery bem como no combate ao estigma de pessoas com problemas de saúde mental (Hurley, Linsley, Rowe, & Fontanella, 2014; Quinn, Shulman, Knifton, & Byrne, 2011).
Através da arte, as pessoas são estimuladas a expressarem-se de forma criativa de modo a promover uma maior autoconsciência e insight sobre a doença. Hacking et al. conduziu uma avaliação de alguns projetos de arte durante dois anos e identificou benefícios ao nível da autoestima, autodeterminação, confiança, empoderamento, inclusão social, assertividade, gestão da ansiedade e bem-estar físico, social e psicológico (Hurley, Linsley, Rowe, & Fontanella, 2014; Quinn, Shulman, Knifton, & Byrne, 2011; Hacking, Secker, Spandler, Kent, & Shenton, 2008).
O See Me é um exemplo de um programa que visa combater o estigma contra as pessoas com problemas de saúde mental utilizando campanhas artísticas. É um programa da Escócia, fundado em 2002 e gerido pela Scottish Association for Mental Health e pela Mental Health Foundation (Organização Mundial de Saúde, 2008).
Em 2007, Glasgow e Lanarkshire desenvolveram o Scottish Mental Health Arts and Film Festival. Este festival abrangeu uma série de eventos tais como exposições, debates, filmes, documentários, eventos comunitários, concertos, peças de teatro e workshops resultando em melhorias nas atitudes empáticas e de apoio em relação às pessoas com problemas de saúde mental (Quinn, Shulman, Knifton, & Byrne, 2011).
Outras campanhas com o mesmo fim são organizadas pela mesma organização, tais como Art Trail by Rail, Health Singing e Now You See Me; Now You Don’t. A primeira consiste numa exposição de arte nas estações ferroviárias onde artistas com doença mental partilham as suas experiências com a comunidade em geral. A segunda visa quebrar barreiras através da música e da dança organizando workshops de forma a dissipar os mitos e fornecer informações sobre a doença mental. A terceira visa criar obras de arte que expressam a perceção da identidade das pessoas estigmatizadas e como elas se sentem perante a forma como são vistas pela comunidade. A campanha tem como principal objetivo sensibilizar a comunidade em geral da forma como o estigma e a discriminação afetam a identidade das pessoas com doença mental e consequentemente o seu processo de recuperação (See Me, 2015).
As práticas baseadas na arte têm, de facto, tido um interesse crescente no âmbito da saúde mental por seguirem uma abordagem centrada na pessoa e orientada para a recuperação emocional, social e até muitas vezes espiritual. A literatura revela-nos a grande utilidade dos programas de reabilitação baseados na arte com o objetivo de reduzir a incapacidade psicossocial e apoiar o recovery (De Vecchi, Kenny, & Kidd, 2015), possibilitando um melhor autoconhecimento, desenvolvimento de estratégias de coping alternativas e expressão de sentimentos e emoções (Stacey & Stickley, 2010; Van Lith, Schofield, & Fenner, 2013). Contactar com práticas artísticas na comunidade pode melhorar a saúde geral através do reforço da autoestima, contribuir para um sentimento de valorização e fomentar o desenvolvimento de redes sociais (Camic, 2008).
De qualquer modo, a evidência que suporta a eficácia das atividades criativas no bem-estar mental ainda não é muita robusta, contudo continua-se a identificar o potencial das artes criativa como ferramentas terapêuticas e de transformação e não uma intervenção destinada somente à ocupação (Leckey, 2011).
III. Projeto Sincronias
No seguimento das iniciativas desenvolvidas noutros países, tidas como boas práticas na área da saúde mental, a Associação Nova Aurora na Reabilitação e Reintegração Psicossocial – ANARP em conjunto com o Curso de Licenciatura em Artes Visuais e Tecnologias Artísticas (AVTA) desenhou e implementou um projeto de inclusão social pelas artes – o Sincronias.
Video explicativo do Projeto Sincronias |
A Escola Superior de Educação (ESE) integra, no seu portefólio formativo, o Curso de Licenciatura em Artes Visuais e Tecnologias Artísticas, concebido e refletido autonomamente com a clara consciência das complexidades sociais que a educação mobiliza e das proximidades e conexões com formações no domínio da ação e intervenção social.
A Licenciatura em AVTA é um curso com um currículo de estrutura transversal e transdisciplinar no âmbito das artes visuais e plásticas que visa habilitar os alunos com competências técnicas, operativas e teóricas nos domínios das artes. Na sua estrutura curricular, apresenta a Unidade Curricular de Dinamização de Ateliers de Artes Visuais [Iniciação à Prática Profissional], que é desenvolvida em contexto de trabalho (estágio) junto de entidades parceiras da ESE. Assim, o referido curso pretende, na sua origem, formar agentes educativos, especialistas na dinamização de ateliers de educação artística, cuja formação no âmbito das artes visuais se distingue por um princípio de responsabilidade social, procurando a sua transformação em agentes de mudança. É sua missão contribuir para o desenvolvimento cultural e social, no respeito pelos valores ecológicos, interculturais e de cidadania, através da qualidade da formação de profissionais capazes de se recriar como agentes de progresso em áreas ligadas ao ensino das artes
Neste contexto, as artes e a educação podem ser, para os utentes da ANARP um contributo essencial para a sua recontextualização no mundo, bem como para o alargamento das suas capacidades que, acreditamos, poderão ter um efeito transformador sobre a vida destas pessoas, conectando-as com o mundo. Os participantes deste projeto são pessoas com diagnóstico de Esquizofrenia, entre os 27 e os 56 anos, sem sintomatologia positiva ativa, e com interesse pelas artes. A sua escolaridade é maioritariamente o 12º ano e encontram-se desempregados ou reformados.
Para o efeito, foram estruturados três espaços de intervenção distintos:
1) Integração de utentes com diagnóstico de Esquizofrenia da ANARP em Unidades Curriculares do Curso de Licenciatura em AVTA: a frequência de UCs por utentes da ANARP, por um lado, procura proporcionar a integração de pessoas que sofrem com Esquizofrenia no meio académico, promovendo trocas sociais com técnicos, alunos e professores, abrindo caminho para o trabalho integrado numa comunidade e, por outro lado, permitindo a aquisição de competências tecnológicas e plástico-expressivas ao nível das diferentes tecnologias artísticas (Ver Fotografia 1). Os utentes frequentam as UCs consoante os horários destas, como qualquer outro aluno.
Fig. 1 Pessoa com esquizofrenia com a professora em contexto de oficina de cerâmica
2) Criação de um espaço/ atelier nas instalações da ANARP destinado à realização de atelieres de Educação Artística: o trabalho em atelier estimula os impulsos naturais e promove o desejo por fazer, explorar e manipular técnica e plasticamente os materiais, na procura da expressão de emoções, sentimentos e vivências pessoais, libertas de constrangimentos (Ver Fotografia 2). As sessões de atelier são dinamizadas duas vezes por semana, com a duração de duas horas. Contudo, os utentes ficam com a sala e o material disponível para utilizarem quando quiserem.
Fig. 2 Resultado de um atelier de pintura criativa
3) Participação em projetos artísticos comunitários, quer numa vertente de agente ativo e criador de instalações artísticas, quer apenas como espetador de outros artistas com o intuito de absorver outras técnicas e formas de estar na arte (Ver Fotografia 3). Os utentes vão participando em iniciativas que vão surgindo, contudo, a visita a exposições tem a periodicidade mensal.
Fig. 3 Visita a Serralves para observação de diferentes trabalhos artísticos
Ao analisarmos a estrutura destes três espaços de intervenção, concluímos que o próprio desempenho da atividade é já por si integrador sem a obrigatoriedade de se conceber uma obra de arte no final, porque a pessoa com esquizofrenia se encontra num contexto normalizador e que lhe proporciona sentido de pertença e utilidade. Partimos, então, da premissa de que a educação artística facilita o desenvolvimento e promove uma evolução harmoniosa, porque coloca as pessoas perante a sua própria criatividade, as suas capacidades pessoais e sociais para, ao longo desse processo, estimular a necessidade de melhor compreender o mundo e facilitar a auto identificação com a experiência tecnológica e plástica no sentido de provocar satisfação pela descoberta.
O processo de mudança desta população conhecerá sucesso se proporcionarmos o seu contacto com a arte, e isto deverá acontecer através da mobilização de uma metodologia própria de educação artística. Nesse sentido, com o trabalho contínuo no atelier procuramos reforçar a autoestima e a realização pessoal, bem como pretendemos fomentar a motivação alicerçada no trabalho plástico que as pessoas com problemas de saúde mental irão desenvolver ao longo das múltiplas sessões desenvolvidas durante um semestre.
Com esta parceria procuramos compreender, a médio prazo, os mecanismos e dispositivos que mobilizamos para integrar a educação artística com sucesso artístico, pessoal e social na vida das pessoas com problemas de saúde mental. Pretendemos, ainda, sistematizar o tipo de relações que estas pessoas estabelecem com o seu trabalho e o seu reconhecimento do processo que as conduziu até ao resultado final, no sentido deste se constituir uma mais-valia para a sua integração social.
Os três espaços de intervenção têm, portanto, a intenção de promover mudanças comportamentais individuais e coletivas sendo considerados um veículo e não um fim em si mesmo. É pela ação que o medo de falhar se dissipa e se potencia a partilha. É o pôr em comum, a exposição, que realiza a obra e também realiza quem a produz. Não há arte, ciência, cultura, sem partilha, sem dádiva, sem troca. A sua existência advém desta ação, que implica também a segurança de (se) expor.
A promoção do desenvolvimento da personalidade e das aptidões mentais e físicas através da educação artística é um investimento educativo que deverá ser valorizado. Poder-se-á considerar que estes ateliers se tornam, desta forma, num veículo e não num fim em si mesmos, pretendendo auxiliar os participantes a estabelecer reciprocidades entre o seu autoconceito e a necessidade que este reclama de todos os outros, fundamentais para o seu desenvolvimento. “A cultura e a arte são componentes essenciais de uma educação completa que conduza ao pleno desenvolvimento do indivíduo. Por isso, a Educação Artística é um direito humano universal, para todos os aprendentes, incluindo aqueles que muitas vezes são excluídos da educação” (Comissão Nacional da Unesco, 2006, p. 5).
Impacto nos intervenientes
A estruturação nos três eixos acima definidos possibilitou que o projeto implementado conseguisse responder às necessidades de cada utente em particular. Tem sido possível proporcionar ao grupo de beneficiários um ambiente de criatividade, partilha e crescimento pessoal mediado pelas artes.
É visível nas pessoas com Esquizofrenia que participam neste projeto não só um maior conhecimento das técnicas, como também da sua leitura crítica e sensibilidade sobre peças artísticas. Uma das utentes que participa no projeto referiu numa das sessões que “Quando estou a fazer as peças estou abstraída e quando concluo tento transmitir que sou capaz. Que decidi fazer aquilo e consegui. É uma possibilidade de provar a minha competência”. A utente remata ainda referindo “As artes são uma ferramenta para nos sentirmos mais autónomos, mais à vontade, mais soltos, mais convencidos de que somos capazes”.
Este projeto permitiu ainda, no ano passado, a colaboração da ANARP na iniciativa “Quem és, Porto?”, uma das etapas do projeto Locomotiva dinamizado pela Porto Lazer, que tem como objetivo construir um painel de azulejos que represente a cidade através da visão dos seus próprios habitantes. Neste âmbito, os utentes da ANARP participaram num dos workshops desenvolvido na Estação de São Bento e colaboraram através da produção de azulejos no seguimento de sessões criativas desenvolvidas nas instalações da Associação. Enquanto público frequentemente excluído da sociedade, foi importante incluí-los na reflexão sobre aquilo que é a cidade do Porto e como a pretendem retratar, pelo que os utentes verbalizaram que foi muito gratificante participar ativamente nesta iniciativa e poder ver e mostrar o resultado do seu trabalho.
IV. Conclusão
Foi com este objetivo que o Projeto Sincronias foi desenhado, pretendendo promover a inclusão na sociedade e a capacitação das pessoas com doença mental, em particular Esquizofrenia, usando como veículo a arte. Pretende, ainda, criar a possibilidade de formação acreditada nas áreas artísticas e tecnológicas, desenvolvendo competências técnicas e criativas. Um outro objetivo passa por fomentar o debate na temática da doença mental e estigma associado.
O Estágio de Iniciação à Prática Profissional do curso de Artes Visuais e Tecnologias Artísticas da Escola Superior de Educação do Porto pretende mobilizar as técnicas artísticas aprendidas ao longo do curso (papel marmoreado, stencil e carimbos, entre outras), com o objetivo final de organizar uma exposição para mostrar os trabalhos realizados em Sincronias, a fim de valorizar e dar sentido prático ao projeto.
O Sincronias trabalha assim em três focos principais: (1) integração de utentes para desenvolvimento de competências transversais e técnicas, em diversas oficinas da ESE; (2) trabalho prático de atelier privilegiando sempre o diálogo e o foco das experiências; (3) visitas a exposições e espaços artísticos onde se pretende que os utentes se familiarizem com ambientes culturais e desenvolvimento de projetos artísticos na comunidade.
O trabalho até agora desenvolvido demonstra que é fundamental promover a divulgação de experiências, projetos e ações de natureza educativa e social, como forma de incentivo ao acesso às artes para pessoas em desvantagem social, nomeadamente Esquizofrenia. A par deste aumento de oportunidades de participação na vida social e comunitária, este trabalho possibilita também a sensibilização de profissionais quer da área da reabilitação psicossocial, quer dos agentes artísticos, com a consequente adequação das formas de trabalho e transmissão de conhecimentos com esta população. A participação artística comunitária assume assim uma vertente promotora de bem-estar, sentido de pertença e utilidade para todos os envolvidos.