Sensos-e Vol: II Num: 1  ISSN 2183-1432
URL: http://sensos-e.ese.ipp.pt/?p=8726

Apropriação do Espaço pelas Crianças nos Jardins-de-Infância

Autor: Miguel Castro Afiliação: Instituto Politécnico de PortalegreEscola Superior de Educação/C3i – NCSHS

Resumo: No artigo defende-se que para o crescimento harmonioso e global das crianças se deve proporcionar experiências significativas de apropriação do espaço, através de jogos e atividades que promovam ligações emocionais entre a criança e o contexto onde estas decorrem.
O ambiente onde a criança se move, ganha significado pela forma como ela se relaciona com o espaço. Criando-se um contexto propício para a realização de experiências de aprendizagem, “humaniza-se” o espaço, deixando de ser uma mera entidade abstrata de suporte estrutural para a atividade, sem significado marcante para o quotidiano da criança.
Numa era onde o conhecimento virtual parece ganhar cada vez mais peso, em todos os níveis de ensino, incluindo o pré-escolar, apresentamos experiências levadas a cabo em jardins-de-infância da cidade de Portalegre. Através de uma preparação prévia das crianças para o ambiente que iriam conhecer e de atividades lúdicas e muito concretas, no local, conseguiu dar-se significado, simultaneamente, à aprendizagem e ao espaço, levando as crianças a apropriar-se do mesmo, aprendendo assim uma das primeiras bases da Geografia – a empatia e a relação com o ambiente onde nos movemos.

Palavras-Chave: Apropriação do espaço, Pré-escolar, Espaço, Atividades lúdicas.

Abstract: The Paper develops the idea that for a global and harmonious growth of the children one should provide significant experiences of appropriation of space, through games and activities that promote emotional ties between the child and the context in which they occur.
The environment where the child lives becomes meaningful, depending on the way they establish positive relations with space. A facilitating environment for the learning experiences "humanizes" the space. The space is no longer an abstract entity or a structural support for the activity, without meaning for the child's daily life.
In an era where the virtual knowledge seems to gain more and more weight and emphasis in all levels of formal education, including preschool, we present experiments carried out in Portalegre’s kindergartens. Through groundwork with children, about the places they would be in, and recreational and very concrete activities, which took place on site, they found a meaning to the learning and to the space. Through this methodology, one can lead the children to the appropriation of space and make them contact with one of the first bases of Geography - empathy and the relationship with the environment we move in.

Keywords: Appropriation of space, kindergarten, Space, playful activities.

Apropriação do Espaço pelas Crianças nos Jardins-de-Infância

Autor: Miguel Castro Afiliação: Instituto Politécnico de PortalegreEscola Superior de Educação/C3i – NCSHS

A apropriação dos espaços pelas crianças

 

“Espaço” é mais abstrato do que “lugar”.

O que começa como espaço indiferenciado

 transforma-se em lugar à medida que o

 conhecemos melhor e o dotamos de valor.”

Yi-Fu Tuan(*) 

 

O mundo ocidentalizado atual é cada vez mais virtual e mediatizado. O ensino é fruto e reflexo das sociedades e transformações que se operam fora do sistema. Assim, a escola tende a tornar-se cada vez mais dependente das tecnologias de informação e comunicação. Quando entre professores se fala em aulas interativas, pretende-se acentuar a ligação com materiais tecnológicos e virtuais. O aluno interage com o professor, com os colegas e, quase sempre, com algum conteúdo retirado da web, de um CD ou DVD que acompanha o manual, ou de uma ligação direta que se estabelece na sala de aula, num computador com ligação wireless à internet. Podemos ainda supor que a sala possui um quadro interativo, onde professores e alunos estão cada vez mais dependentes da tecnologia e da qualidade e rapidez das ligações ao mundo tecnológico. Os alunos conseguem algo que verdadeiramente me fascina: ouvir o professor, conversar com o colega e enviar sms, tudo em simultâneo.

Todos temos (em maior ou menor grau) uma necessidade de estar “ligados”, mesmo que contra vontade, pela integração no mundo do trabalho. Não me parece que a dependência das tecnologias e o seu aproveitamento para todas as atividades da vida possuam uma carga negativa; antes pelo contrário, escrevo o texto no portátil e posso enviá-lo instantaneamente, de Portalegre para o Porto. Porém, o conhecimento do espaço, da realidade geográfica, ficam sempre incompletos sem o contacto físico, concreto. Conhecer uma cidade não passa apenas por realizar os passeios turísticos e visitar os monumentos, ou outras atrações. A luz, o cheiro, os sons e fundamentalmente as experiências e as vivências, positivas ou negativas, que ocorrem a cada um, num espaço específico, são os verdadeiros responsáveis por esse conhecimento. Perante uma praça pública, cada indivíduo pode ter uma experiência sensorial e humana diferente, que o liga ao espaço de forma particular: a disposição que sentia, o que comeu, o espetáculo a que assistiu, o assalto que sofreu, os sons que registou… A paisagem é também uma construção pessoal! Ficamos ligados aos espaços, dependendo das vivências pessoais que neles ocorrem; dificilmente o espaço é neutro. Podemos não reter o que vimos ou por onde passámos, mas este acontecimento processa-se pela ausência de ligação que conseguimos estabelecer com o espaço. Tal como, num evento social, fixamos umas pessoas, outras são-nos apenas indiferentes, isto é, não nos provocam nenhuma sensação particular.

A Geografia, estudando os espaços e os territórios, deve ter em conta que estes não são inócuos para os indivíduos – adquirem significados, empatias e pertenças. São estas sensações que nos levam a gostar dos lugares. Transformamos o espaço em lugar, como nos diz Tuan (1983). A introdução da Geografia, nos grupos etários mais baixos, dever-se-ia preocupar em deixar impressas experiências significantes nos contextos espaciais, de forma a conduzir as crianças ao gosto pelo local, criando empatia e facilitando a aprendizagem. Desta forma, as funcionalidades e as razões que levam (ou levaram) à organização de um determinado espaço terão mais probabilidades de ser compreendidas e de as atraírem, ligando-as a ele e tornando-o parte da sua individualidade. “ (…) apreendemos o mundo e a experiência de modos significativamente diferentes e essas diferenças requerem que o conhecimento seja organizado de modo também diferente para que possa tornar-se mais acessível e educacionalmente mais eficaz ao nível de cada estádio.” (Egan, 1992:19)

Para o universo infantil, a realidade é concreta, mesmo que mítica ou fantástica. Kieran Egan (1990; 1994) apresenta quatro estádios da compreensão histórica que correspondem a estádios do desenvolvimento da criança: o pré-escolar corresponde ao “mítico” (4 a 9/10 anos). Este estádio compreende características que nos ajudam a perceber como nos devemos aproximar do imaginário infantil, caso queiramos conseguir que a criança esteja aberta a conhecimentos e conceitos que pretendemos que ela adquira. A primeira característica do pensamento da criança neste estádio é a necessidade de segurança intelectual; através do mito transmitimos “explicações exaustivas do porquê de as coisas serem como são, e fixando o significado dos acontecimentos através da sua relação com modelos sagrados.” (Egan, 1992:23). A segunda marca do pensamento mítico é a falta de sentido da diversidade – de tempo, da física, da causalidade lógica e do espaço – “o facto de as crianças não possuírem o sentido da diversidade das coisas pode ser explicado simplesmente como falta de experiência e de conhecimento da mudança e da causalidade à escala histórica e num determinado espaço geográfico.” (Idem:24) O terceiro traço distintivo “é a falta de um sentido do mundo como algo de autónomo e objetivo. (…) O mundo da criança está cheio de entidades que adquirem significado através das coisas que a criança conhece melhor: o amor, o ódio, a alegria, o medo, o bem, o mal. (idem: 24). Por último, a compreensão da realidade é conseguida de melhor forma se se articular a realidade em oposições binárias bem vincadas – “as crianças começam a dar sentido às coisas em termos binários” (idem: 25).

O espaço é complexo e o seu conhecimento por parte da criança só é possível se for apresentado de forma integrada e de acordo com o seu raciocínio. Conhece o espaço por atividades permitem compreender a função, a história, os aspetos naturais e sociais presentes numa determinada área ou local.

As teorias do desenvolvimento cognitivo, ligadas à educação, privilegiam os aspetos lógico-dedutivos, capacidade de compreensão dos fenómenos e manipulação de conceitos concretos e abstratos. Piaget (1931) enfatiza a capacidade lógico-matemática e a capacidade de abstração, estabelecendo, ainda que com flexibilidade, grupos etários para compreender e manipular conceitos, mais abstratos ou mais concretos.

Não pondo em causa Piaget, Kieran Egan, como vimos, advoga que a criança, desde cedo, consegue manipular conceitos abstratos e interpretar a realidade, se esta lhe for introduzida de acordo com a sua “cosmologia e cosmogonia mítica”.

Assim, para transformarmos o espaço em lugar, isto é, um espaço significativo e com o qual a criança estabeleça uma relação de intimidade e proximidade, devemos criar experiências em que a criança participe, seja protagonista e que vão de encontro ao seu universo de fantasia, aventura e imaginação. Este texto relata, de forma breve, o trabalho levado a cabo em jardins-de-infância de Portalegre, onde através da criação de vivências espaciais proporcionadas às crianças, foi visível uma interiorização e apropriação do espaço, como seu, e a aprendizagem de conceitos geográficos e históricos importantes, de forma lúdica e de acordo com a sua capacidade de compreensão de um universo mágico, mas também real e concreto.

Do espaço ao lugar – uma experiência pedagógica

Para suportarmos a nossa afirmação de que as crianças atribuem uma maior importância ao espaço e desenvolvem uma relação de intimidade com o mesmo, se nele vivenciarem práticas significantes para o seu universo de aprendizagens, preparámos, com alunos de Prática Pedagógica da Escola Superior de Educação de Portalegre, algumas atividades para pôr em prática nos Jardins-de-infância onde estavam estagiar.

Foram preparadas e desenvolvidas atividades lúdicas, em fins-de-semana pedagógicos, onde as alunas, assumindo o papel das crianças, se tornaram protagonistas dos jogos, de maneira a poderem experienciar as dificuldades, por um lado e, por outro, usufruir da sensação de aprendizagem significante de conceitos que estão, direta ou indiretamente, ligados a um espaço específico.

A ligação e conhecimento do espaço através de atividades lúdicas foram também experimentados pelos futuros educadores. O ambiente que se gerou entre o grupo durante a preparação e concretização dos jogos foi muito positivo. Os alunos sentiram e compreenderam a importância destas opções pedagógicas, em que se desfruta simultaneamente uma vivência divertida e pedagógica, para além da oportunidade privilegiada de criar/solidificar relações interpessoais – educador(es)/criança(s) e criança(s)/criança(s).

Este pequeno vídeo é um exemplo de um fim-de-semana pedagógico, cheio de sentido educativo, pedagógico e com um carácter interativo e divertido.

Vídeo 1 - Registo de um fim de semana pedagógico

Escolhemos dois espaços para os dois jogos principais: o castelo de Marvão e as ruínas romanas da cidade da Ammaia, ambos no Concelho de Marvão, Distrito de Portalegre. No primeiro, encenou-se um torneio medieval; no segundo, a partir de algumas caraterísticas do próprio espaço, realizou-se um jogo que simulava o apagar de um incêndio numa cidade romana. Estas duas atividades foram primeiro postas em prática pelas alunas finalistas da ESEP, a realizar estágio pedagógico, com dois grupos de crianças do pré-escolar.

É unânime a todos os intervenientes (professores, educadores e alunos) que posteriormente às visitas de estudo, em contexto escolar (nos vários níveis de ensino), o mais marcante são os momentos de convívio e lazer, e não tanto os espaços de visita pedagógica que conduzem à deslocação. É certo que os professores ou educadores preparam as visitas aos locais e que estes têm um evidente interesse e valor educativos; no entanto, o que marca e fica na memória são os divertimentos, as canções, a viagem e as relações que se estabelecem, ou aprofundam, entre pares e entre professores e alunos, ou crianças e educadores. Esta última razão é suficiente para justificar a realização de uma visita de estudo, uma vez que a uma maior proximidade e compreensão, corresponde um melhor ambiente de aprendizagem e desenvolvimento das pessoas (crianças, jovens ou adultos); porém, os objetivos pedagógicos e de aprofundamento e desenvolvimento de conteúdos ficam, normalmente, muito aquém do projetado e pretendido. Relativamente à realização de atividades que envolvam as crianças no espaço, confirmámos que é possível cumprir, simultaneamente, os objetivos pedagógicos da visita de estudo e os aspetos lúdicos e relacionais.

Em termos de aprendizagem geográfica e de conhecimento e relação com o espaço, os jogos levam a que a criança estabeleça com ele uma relação significativa, apropriando-se do mesmo e tornando-o, assim, em lugar afetivo, onde ocorreu algo relevante, onde se sentiu bem e esteve divertida. O espaço deixou de ser um suporte físico – tornou-se passível de relacionamento e de “humanização”, adquiriu características de envolvência que o transformou em “LUGAR”.

A transformação do local/espaço em lugar pela sua vivência, apropriação e interiorização, proporcionam vários aspetos que, pedagogicamente, são importantes e vão de encontro à forma de estar e pensar da criança. A aprendizagem – se é que podemos falar de aprendizagem nesta classe etária (é uma discussão interessante mas que não nos cabe desenvolver neste contexto) – depende de uma multiplicidade de fatores objetivos e subjetivos. Se, objetivamente, os fatores físicos e espaciais, conforto, qualidade dos materiais pedagógicos, acesso a tecnologias, etc…são uma parte fundamental para uma educação de qualidade, subjetivamente existem outros aspetos intangíveis sem os quais não se consegue atingir as metas traçadas. Prendem-se com os afetos e bem-estar com o outro e com o espaço. A criança está mais predisposta a novas experiências, aprendizagens e a desenvolver a sua natural curiosidade se se encontrar num ambiente que lhe é conhecido e acolhedor, juntamente com a companhia de adultos ou crianças que lhe são afetivamente queridas e próximas. Assim, proporcionando experiências e atividades que levem a criança ao conhecimento e apropriação do espaço e possibilitem uma maior proximidade com o mesmo, criam-se contextos facilitadores das aprendizagens e introduz-se, simultaneamente, o conceito de Geografia como a observação do ambiente, as funções espaciais e as características físicas e humanas de uma realidade que, pela sua experiência, lhe é próxima.

A compreensão do contexto espacial através de atividades lúdicas e jogos permitem à criança o desenvolvimento de várias competências e promovem o seu desenvolvimento integral. Para além da coordenação motora, estes jogos fomentam o espírito de equipa, entreajuda e organização do grupo, bem como o cumprimento de regras, como requisitos imprescindíveis para atingir um objetivo/bem comum. A interdependência e o sentido coletivo desenvolvem o sentido de responsabilidade e da valorização da autoestima, proporcionando à criança um conjunto de competências sociais e culturais e, simultaneamente, prepara-a para a descoberta e para a aprendizagem.

De uma forma resumida, através do espaço, da sua exploração e conhecimento, ou seja, de conceitos geográficos, prepara-se as crianças para o desenvolvimento de competências sociais e escolares que a tornarão mais apta para enfrentar a complexidade do mundo que, sendo cada vez mais tecnológico, carece de sentido sem a vivência e o contato humano.

Em termos estritamente pedagógicos, a intenção desta experiência foi dotar as crianças de conhecimentos de História e Geografia e relacioná-los com o meio e recursos locais, dando significado a espaços e contextos com os quais, mais tarde ou mais cedo, iriam contactar. Numa época em que a informação entra em todos os espaços e, consequentemente, também nas escolas e jardins-de-infância, quisemos dedicar um tempo em que, para além de refletir e interiorizar a informação, pudéssemos dar um passo mais além, deixando os ecrãs e indo de encontro ao físico e concreto, observando, tocando e sobretudo vivenciando o espaço, assimilando a informação de forma real e não virtual.

A metodologia utilizada neste projeto foi de investigação/ação. Não se pretendia realizar uma investigação extensiva, mas apenas um Caso de Estudo. Esta metodologia seria, quanto a nós, adequada para conseguir testar o objetivo de verificar se existe uma maior facilidade de apreensão de conceitos e conteúdos quando apresentados através de atividades realizadas num contexto espacial onde ocorreriam experiências significativas.

Embora os resultados não pudessem ser linearmente extrapolados, as conclusões apontam caminhos e permitem reflexões e novas práticas em contexto de jardim-de-infância.

Com dois pares pedagógicos (conjunto de duas alunas em estágio) em duas salas de jardins-de-infância de Portalegre, com 21 e 19 crianças, prepararam-se jogos com conceitos de História e Geografia. A comparação e validação dos resultados foram efetuadas com outros dois grupos de controlo, constituídos por outros dois pares pedagógicos colocados noutro jardim-de-infância, introduzindo os mesmos conceitos de forma mais tradicional.

Perto da cidade de Portalegre, no concelho de Marvão, localizam-se as ruínas romanas da cidade Ammaia, com alguma importância regional na época da romanização da península. Este espaço arqueológico, ainda que com certas lacunas em termos de escavações, recuperação e musealização do legado romano, possui algumas estruturas de grande porte, como um amplo lajeado e as torres de defesa da entrada da cidade, ainda bem visíveis e em bom estado de conservação. Perto destas estruturas, passa uma levada de água, não do tempo romano, mas que atualmente canaliza um regato já utilizado nessa época. Na vila muralhada de Marvão localiza-se um castelo, exemplo típico e muito eloquente da época medieval, com amplos espaços interiores.

Conhecedores desta realidade, prepararam-se as crianças para a vida na época Romana e na Idade Medieval. Através de histórias, lendas locais, livros com ilustrações e pequenos excertos de vídeos, sobre as realidades que iriam visitar, incutiu-se o espírito de aventuras que as personagens das histórias e dos filmes viviam nessas épocas. Os fortes e corajosos cavaleiros, que se preparavam para as liças e outros jogos de guerra, foram vistos em filmes (excertos) da Disney (Robin Hood e A Espada era a Lei), ou as intermináveis e hilariantes aventuras de Astérix e Obélix contras os (loucos) Romanos. Esta preparação criou ambiente e expectativa nas crianças, relativamente à visita de estudo aos locais onde, no seu imaginário infantil, tinham ocorrido cenas iguais ou semelhantes às apresentadas na sala de atividades.

A par deste trabalho, e para que a experiência/atividade no local fosse o mais empolgante e marcante possível, as alunas em estágio adquiriram e construíram alguns materiais e adereços baratos e seguros para a manipulação infantil – roupas e utensílios, cavalos de pau, espadas de plástico e escudos de cartão.

O grupo de crianças que visitou a cidade da Ammaia, depois de ter estado no museu e realizado uma breve visita (de acordo com a sua idade) às ruínas, concretizou dois jogos. Um de orientação – “Vamos encontrar alimentos”; outro de coordenação motora e reforço do espírito de grupo – “Apagar o fogo no tempo dos Romanos”. A excitação das crianças começou logo no vestir dos adereços. Os capacetes de cartão e os fatos feitos com sacos de plástico de grandes dimensões, cintados com uma corda, levaram as crianças a assumir os seus papéis de romanos e outras personagens marcantes que tinham ‘conhecido’ nos filmes apresentados na sala do Jardim de Infância.

O primeiro jogo consistia em dividir as crianças em grupos para procurar alimentos nas ruínas, através de indicações de esquerda/direita ou “Quente/Frio” (conforme as idades). As reproduções plásticas dos alimentos foram previamente escondidas pelas alunas nas ruínas. A escolha dos esconderijos teve que ter em conta um grau de dificuldade que permitisse cumprir os objetivos didáticos e pedagógicos, mas que não frustrasse ou desinteressasse as crianças, implicando o percorrer do ‘maior’ espaço possível para que se fossem apropriando e conhecendo-o o melhor possível.

O segundo jogo, envergando ainda as mesmas roupas de fantasia, implicou água e consequentes molhadelas e peripécias. Separadas em duas grandes filas, a primeira criança de cada grupo estava perto da levada de água e a última ao lado de um balde. Todas mantinham o posto (desde a água até ao balde) e cada uma tinha um copo de plástico na mão. O objetivo final era encher o balde e despejá-lo num determinado ponto nas ruínas da cidade, onde ‘ardia’ um suposto fogo. A primeira criança enchia o copo e recebia do colega mais próximo um já vazio. O copo teria que se manter cheio, passando por todas elas, até à última que o despejava no balde que precisavam de encher. Finda esta tarefa, em equipa tinham que transportar o balde para ‘exterminar’ o ’fogo’.

Para além de desenvolver a coordenação motora, este jogo fomenta o espírito de equipa, entreajuda e organização do grupo, bem como o cumprimento de regras, como requisitos imprescindíveis para atingir um objetivo/bem comum.

O sucesso destas atividades foi evidente. As crianças ‘transportaram-se’ para a época romana, interiorizando o estilo de vida há muito vivido, naquelas ruínas. Uma visita ao local, apenas com papel de espetador, muito provavelmente não teria qualquer significado para a maioria dos alunos. Desta forma, as ruínas da cidade da Ammaia ganharam significado como o LUGAR onde em tempos haviam vivido as personagens que imitaram nos jogos em que se divertiram e que lhes proporcionaram a experiência de atividades diferentes do habitual.

No castelo de Marvão, a atividade consistiu na simulação de um torneio. Num dos espaços mais amplos do exterior do castelo dividiram-se as crianças em vários grupos. De espada e escudo, duas crianças posicionavam-se em dois extremos de um terreno marcado. No centro desse espaço, uma outra criança ficava em pé, com argolas penduradas nos braços abertos. O objetivo era retirar as argolas com a espada de plástico, indo a correr de uma extremidade à outra. O primeiro que conseguisse retirar todas as argolas do seu lado, ganhava e passava-se a outro grupo de crianças. A rotatividade de grupos e de posições passou por todos.

O castelo ganhou ambiente de torneio medieval – as crianças brincaram a algo que acreditavam ter-se passado nesse mesmo espaço. No seu universo fantástico, aquele castelo adquiriu vida; foi possível criar uma relação com um espaço museológico, que serviu como cenário de um ‘torneio igual’ ao das histórias e vídeos a que tinham assistido com as educadoras. De súbito, tornaram-se protagonistas e a visita de estudo cumpriu os seus objetivos pedagógicos, através de uma recriação histórica, conseguida com uma atividade interativa (não virtual!). Sentiram e compreenderam que naquele local houve vida e pessoas que o utilizaram. Criou-se uma ligação ao espaço pela sua compreensão e vivência.

Ambas as atividades partiram de um objetivo pedagógico concreto – o ensinamento do tipo de vida nos espaços urbanos, em tempos históricos longínquos. Sabendo que o entendimento infantil da realidade passa por uma concretização do real, os jogos realizados nos espaços históricos permitem à criança captar o abstrato, lidando com o concreto. Percebem também, mais facilmente, a importância do suporte físico para as atividades humanas. Através destas vivências marcantes, as crianças ligam-se afetivamente aos espaços, humanizam-nos, compreendem-nos e apropriam-se deles, isto é, tornam-nos seus e transformam-nos em lugares com significado.

Esta estratégia complementa a utilização das novas tecnologias e as potencialidades que as apresentações virtuais permitem introduzir nos processos pedagógicos. O recurso a vídeos e/ou programas de jogos de computadores facilitam a preparação e introdução de conceitos históricos e geográficos, mas não podem, nem devem substituir o concreto da assimilação do espaço “in loco”.

No pré-escolar, resultados quantificáveis e objetivamente mensuráveis são algo que suscita muitas dúvidas. A grelha de avaliação dos resultados obtidos pelas crianças foi qualitativa e elaborada a partir das opiniões das crianças, do ficaram a saber sobre as épocas, da observação da Educadora e do seu conhecimento do grupo, e também das opiniões das alunas. A comparação com os grupos de controlo permitiu uma melhor validação dos resultados.

Não obstante as dificuldades de quantificação, os resultados foram positivos. O empenho das crianças foi o principal indicador. As crianças ‘transportaram-se’ para as épocas, interiorizando o estilo de vida há muito vivido naquelas ruínas.

A comparação do desempenho das crianças implicado no projeto com o grupo de controlo mostrou que as crianças do primeiro grupo não só apreenderam os conceitos básicos com facilidade e mais eficazmente, como desenvolveram competências a nível social e de relação interpares e com os adultos.

A forma como se mediu o alcançar dos objetivos baseou-se em trabalhos na sala de desenho e ilustração e, também, em pequenos “role-plays”. A interação com as estagiárias tornou-se não só mais simples, natural e acessível mas, principalmente, mais próxima, facilitando a relação pedagógica.

Notas finais

 

A Geografia e o estudo do espaço são, nas Orientações Curriculares para o Pré-escolar, algo ainda de acessório. Na Educação de Infância esta ciência ‘perde-se nas Ciências Naturais’, não se individualizando, ficando com um exíguo espaço apenas para estabelecer alguns conceitos do tipo campo/cidade, dia/noite, sem qualquer nível de explicação.

Nos jardins-de-infância, os educadores tentam vencer as dificuldades burocráticas e económicas, levando os alunos ao encontro das paisagens e dos locais com interesse pedagógico, símbolos regionais, locais ou nacionais, e portanto, identitários. O que frequentemente acontece é uma visita que não proporciona experiências e vivências significativas para as crianças, embora possa ter interesse e estar enquadrada nos curricula para a aprendizagem da geografia; perde-se, no entanto, o seu objetivo fulcral: uma ampliação de conhecimentos. De facto, o que se pretende com o ensino da Geografia é que seja significativa para as crianças, indo para além do convívio e relacionamento, facultando a vivência dessas experiências de forma mais profunda e enriquecedora.

Sendo a Geografia uma das mais eficazes ferramentas para lidar com as diferentes paisagens e situações com que ao longo das nossas vidas nos deparamos, introduzi-la de forma eficaz, desde a mais tenra idade deverá ser um dos objetivos essenciais dos educadores. Para tal, devemos recorrer, numa primeira fase, aos recursos locais, para que progressivamente se possam preparar os alunos para realidades mais vastas.

A frase de George Benko (1999:145) adquire cada vez mais sentido: “Pensar global para agir de forma local”. A ideia é fornecer ferramentas pedagógicas, que sob uma forma prática, introduzam aspetos didático-pedagógicos que possibilitem aos futuros profissionais da educação, formados na nossa escola, utilizar os recursos locais para passar uma mensagem de vivência global.

Uma dimensão que se pretende sempre presente no projeto é a ligação à realidade regional e local (com ênfase na perspetiva geográfica), uma vez que este universo é, em si mesmo, um campo propício ao desenvolvimento de processos diversificados de compreensão do meio, permitindo potencializar recursos que, sendo exteriores à instituição escolar, podem e devem ser utilizados nos processos de ensino/aprendizagem.

As experiências que vivemos num determinado local vão induzir a que o tornemos parte da nossa história pessoal e criemos relações de afetividade ou repulsa com o espaço onde decorreram as nossas vivências. Quando viajamos, conhecemos lugares, pessoas, hábitos, costumes, cheiros e ambientes; porém, aqueles que nos ficam impressos na memória correspondem aos espaços onde qualquer aspeto significativo nos apanhou de surpresa, ou qualquer ocorrência lhes deu sentido. Ficamos com empatia com o local, ele pertence-nos e nós, de alguma forma, pertencemos-lhe – é aquele LUGAR onde….

A Geografia estuda espaços e territórios, devendo ter em conta que estes não são inócuos – adquirem significados, pertenças e potenciam identidades. São as sensações que nos levam a gostar dos lugares e, por extensão, da Geografia. A introdução a esta ciência, precocemente, poderia deixar impressas experiências espaciais que conduzissem ao gosto pela observação da paisagem e da sua explicação. Se as crianças compreenderem a paisagem, a funcionalidade dos espaços e as razões que levam (ou levaram) à organização de uma determinada forma, terão mais probabilidades de o compreender e de se ligar a ele.

As tecnologias da informação e comunicação, sendo um instrumento indispensável para a vida dos seres humanos do século XXI, só adquire sentido se for acompanhada do fator humano. Nada substitui o contacto, o local e as relações que o ser humano é capaz de estabelecer entre homens, animais ou com o espaço. A uma maior intimidade com outra pessoa, estabelecem-se relações de amizade que eventualmente podem evoluir para amor; com o espaço, uma maior proximidade, intimidade e significado, leva-nos a chamar-lhe LUGAR.



Referências


Benko George (1999). A Ciência Regional. Oeiras. Celta. 1ª Edição. 1998, Presses Universitaires de France.

Castro, Miguel (2003). Reflexões sobre a introdução da Geografia na Educação de Infância. Aprender. Nº 27. Portalegre

Castro, Miguel (2012). A Preto e Branco – A Geografia na Educação Pré-escolar. III Seminário de I&DT do IPP, Valorizar o saber, criar oportunidades – C3i. IPP. Portalegre.

Egan, Kieran (1990). Estádios da Compreensão Histórica. ESEP. Portalegre.

Egan, Kieran (1992). O desenvolvimento educacional. D. Quixote. Lisboa

Egan, Kieran (1994). O Uso da Narrativa como Técnica de Ensino. D. Quixote. Lisboa.

Ministério da Educação (2001). Currículo Nacional do Ensino Básico – Competências Essenciais. Lisboa. Ministério da Educação.

Piaget, Jean (1931). Childre’s Philosophies. C. Murchinson. Worcester

Silva, Maria Isabel (1997). Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar. Lisboa. Ministério da Educação.

Tuan, Yi-Fu (1980). Topofilia. Difel. São Paulo.

Tuan, Yi-Fu (1983). Espaço e lugar: a perspetiva da experiência. Difel. São Paulo.