INTRODUÇÃO
A utilização de simulações computacionais (SC) é considerada na literatura como particularmente relevante e adequada como ferramenta complementar em ambiente de sala de aula (Khan, 2011). No entanto, a sua utilização requer alguma atenção por parte do professor de forma a promover uma mediação que potencie a aprendizagem dos alunos (Lazonder, Hagemans, & Ton de Jong, 2010). O crescente interesse por SC interativas e colaborativas é justificado pelo seu potencial na aprendizagem construtivista (Richards, Barowy, & Levin, 1992; Webb, 2005). As SC são ferramentas que podem, por exemplo, estimular a capacidade dos alunos a construírem hipóteses, a interpretarem gráficos e a fazerem previsões (Sahin, 2006).
Em geral, nos ambientes de sala de aula de Ciências Físicas, o professor deve proporcionar apoio epistémico de forma a que os alunos se consigam envolver no desenvolvimento de práticas epistémicas (PE) (Sandoval & Reiser, 2004). Entende-se por práticas epistémicas (PE) desenvolvidas pelos alunos o trabalho que é realizado por eles, aquando da resolução de um problema por si apropriado e que mobiliza trabalho cognitivo com características similares ao do trabalho dos investigadores. São exemplo de práticas epistémicas, questionar, colocar hipóteses ou fazer previsões. As PE são determinantes para a construção de conhecimento individual e o desenvolvimento de competências em Ciências e Tecnologia (C&T). A ocorrência de PE permite aos alunos oportunidades reais de desenvolver atitudes positivas acerca da Ciência, de construir significados associados às suas ações (Jiménez-Aleixandre & Reigosa, 2006), bem como desenvolver competências enquanto sujeito epistémico (Lopes, Branco, & Jiménez-Aleixandre, 2011).
A mediação do professor, através de ações e linguagens (Lopes, Cravino, Branco, Saraiva, & Silva, 2008) pode alicerçar e promover as PE dos alunos (McNeill & Krajcik, 2009) ajudando-os a relacionar a sua prática e explicação dos fenómenos com os modelos teóricos (Sandoval & Reiser, 2004). A importância do papel do professor enquanto mediador encontra-se bem fundamentada na literatura (Hennessy, Deaney, & Ruthven, 2005). O professor medeia a interação entre o estudante e o ambiente através da seleção, modificação, amplificação e interpretação de objetos e processos (Barton & Still, 2004; Tharp & Gallimore, 1988).
Este trabalho estuda a influência da mediação do professor na promoção de PE nos alunos, em ambiente de sala de aula de Ciências, utilizando SC. Pretende-se identificar relações entre a intencionalidade do professor, as suas iniciativas de mediação do professor em aula, com as PE desenvolvidas. Em particular, pretendemos responder às seguintes questões: que relações existem entre intencionalidade didática e traços da mediação? Que traços da mediação promovem PE?
Ilustram-se algumas destas relações através de dois pequenos vídeos que mostram uma sequência de vários momentos das aulas. Neles podemos observar a intencionalidade e mediação do professor, a tarefa a ser executada pelos alunos e as respetivas práticas epistémicas envolvidas. As SC utilizadas incidiam sobre a temática da hidrodinâmica, lecionada a alunos de cursos de formação de professores do Ensino Básico.
METODOLOGIA
A metodologia de investigação consistiu num estudo multicaso (Cohen, Manion, & Morrison, 2010). Pretendeu-se analisar casos reais, com vista à procura de características acerca da mediação dos professores durante a utilização de simulações. Com esta análise pretendeu-se contribuir para o conhecimento acerca de factores que poderão estar na origem do potenciar de certas práticas epistémicas desenvolvidas pelos alunos.
Participantes
Foram participantes neste estudo dois professores do Ensino Superior em Ciências Físicas: um de um programa de Mestrado (Caso A) e outro de um programa de Licenciatura (caso B), ambos da mesma Instituição de Ensino Superior em Portugal – Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto. Esta é uma abordagem qualitativa, que procura identificar diversas situações de sala de aula. A diversidade dos casos favorece o objetivo de encontrar e caraterizar diferentes traços de mediação do professor promotores de PE quando se recorre a SC como recurso. As principais características relativas a cada caso encontram-se apresentadas na Tabela 1.
Caracterização dos Casos e dos Recursos Didáticos Utilizados
Nos dois casos os professores utilizaram vários recursos na sua mediação com os alunos em sala de aula. Nas aulas estudadas (laboratoriais) foram utilizadas simulações computacionais e/ou trabalho experimental (Tabela 1).
Tabela 1: Características principais dos dois Estudos de Caso
As simulações utilizadas foram as seguintes:
http://phet.colorado.edu/en/simulation/projectile-motion;
http://www.walter-fendt.de/ph14e/hydrostpr.htm;
http://phet.colorado.edu/en/simulation/buoyancy;
No caso A, a tarefa apresentada aos alunos consistiu na identificação da melhor posição para fazer um furo numa garrafa de água pousada numa mesa. O fluxo criado através desse furo deveria atingir a superfície da mesa num ponto o mais distante possível. Consistiu num desafio aberto, promotor de uma abordagem investigativa por parte dos alunos. Num primeiro momento promoveu-se a identificação, o debate e a problematização em torno de ideias iniciais dos alunos. Num segundo momento, decorrente dos problemas levantados, desafiou-se os alunos para a procura de dados que fundamentassem as suas ideias iniciais. As SC constituíram os recursos sugeridos pelo professor como fonte de obtenção de novos dados.
No caso B o objetivo principal era o de os alunos melhor compreenderem o conceito de energia potencial mínima de um sistema em que um corpo flutua num fluido, e que esse mínimo corresponde a uma situação de equilíbrio hidrostático. Os alunos foram desafiados a utilizar um modelo teórico em folha de cálculo sobre flutuação para simular situações de ocorrência do fenómeno. Nessa simulação os alunos podiam ver, em três gráficos, a energia potencial do fluido, do corpo em flutuação, e a energia potencial total do sistema nas várias posições de imersão. Esse mínimo torna-se mais evidente ao analisar os gráficos resultantes da inserção dos dados na simulação em folha de cálculo. Paralelamente, os alunos tinham disponível outra SC do sítio PhET onde podiam movimentar dois blocos, fazendo escolhas sobre a densidade destes e do fluido onde flutuavam. As tarefas foram apresentadas aos alunos na forma de um guião.
Recolha de Dados
Diferentes dados multimodais foram recolhidos para cada aula (e.g. gravação áudio, documentos do professor e dos alunos, print screens das diferentes fases do trabalho dos alunos com a SC, fotos, indicação de silêncios e gestos, explicitação de intenções e decisões do professor, cadernos dos alunos, esquema da organização espacial da sala de aula, entre outros). Com base nestes dados cada professor efectua as narrações multimodais (NM) (Lopes et al., 2014) das suas aulas. A NM é uma descrição exaustiva das acções e discurso do professor e alunos com base nos dados multimodais acima indicados, obedecendo a uma estrutura e protocolo referidos em Lopes e colegas (2014). Na primeira parte da NM é feita a descrição geral de toda a aula e contendo os seus elementos contextuais. Na segunda parte é feita a descrição detalhada do que acontece durante um episódio, que corresponde à apresentação de uma tarefa e termina quando se passa para outra tarefa. Depois cada NM é validada por peritos para verificarem a adequação aos dados recolhidos e a sua legibilidade. Cada NM encapsula e organiza todos os dados recolhidos num único documento.
Uma vez que todas as NM, de acordo com o protocolo (Lopes et al., 2014), têm a mesma estrutura, foco e características formais semelhantes, podem ser analisadas de forma similar. Assim, o que será analisado são as diferentes NM produzidas por cada professor.
Análise de Dados
A análise deste estudo considerou um outro trabalho já apresentado pelos mesmos autores (Pinto, Barbot, Viegas, Silva, Santos, & Lopes, 2012) que se centrava na ocorrência de práticas epistémicas (PE) em dois percursos: se da teoria para a prática, se no percurso inverso. Este trabalho foca a intencionalidade da mediação do professor utilizando SC e procura traços de mediação que sejam característicos e importantes para promover práticas epistémicas.
O processo de análise das NM foi realizado em várias etapas, baseado em análise de conteúdo (Bardin, 1977; Krippendorf, 2004), e utilizando a capacidade de codificação de um software de análise (NVivo 8®). Numa primeira fase as partes das NM que continham evidências da ocorrência de PE nos alunos foram identificadas e codificadas, seguindo o critério defendido por Sandoval (2005): através da identificação das ações dos alunos que envolvessem algum tipo de reflexão, ou seja, por exemplo a resolução de um problema, a resposta ou colocação de alguma questão.
O processo que conduziu à identificação de PE foi realizado independentemente por outros investigadores, de forma a obter a sua validação e a oferecer um alto nível de credibilidade (95% de concordância). Como já foi referido, neste trabalho, estas identificações vão ser tratadas de forma a procurar traços de mediação característicos e que se mostrem eficazes no desenvolvimento dessas PE pelos alunos.
RESULTADOS
Mediação do Professor
Para além das diferenças características de cada caso (e.g. diferentes assuntos e SC), a análise das NM mostra diferenças na mediação dos dois professores: na sua ação, nas tarefas propostas, e também nos objetivos selecionados para as aprendizagens.
As tarefas e as SC introduzidas pelo professor do caso A tinham como intencionalidade didática desafiar os alunos a formalizar o modelo teórico que explique o fenómeno do mundo real – um jato de água. Os recursos fornecidos pelo professor foram duas SC disponíveis na Internet: 1 – PHET – movimento de projeteis que permite explorar a relação de como as variáveis iniciais afetam o alcance de um projétil; e 2 – FENDT – pressão hidrostática em fluidos que permite explorar a relação entre a pressão hidrostática com a profundidade para vários fluidos. A mediação do professor, em sintonia com a intencionalidade em vista, priorizou dar tempo e iniciativa aos alunos constituindo-se o professor como suporte da atividade dos alunos na motivação, no seu envolvimento e a reflexão. O professor deu autonomia para explorar as SC e acompanhou o trabalho dos alunos. Foi interagindo com os alunos de forma a reforçar a sua motivação e incentivá-los a comparar os resultados obtidos a partir das SC e a refletirem e discutirem o seu ponto de vista. Ao longo de várias tentativas os alunos foram construindo a sua explicação do fenómeno. A dificuldade principal foi a de interligarem os dois conceitos físicos envolvidos (movimento de projéteis e pressão hidrostática) através do que observavam nas SC. No Vídeo 1 estão alguns dos momentos da aula do Professor A; nele podem ser vistas algumas das tarefas propostas pelo professor, questões colocadas pelos alunos e algumas das suas tentativas de resposta aos desafios lançados.
Vídeo 1 – Resumo da aula do Professor A.
As tarefas e as SC utilizadas pelo professor do caso B tiveram características diferentes das do caso A. Uma das SC utilizada foi a PHET – impulsão que permite explorar a forma como a impulsão ocorre em diferentes líquidos com blocos de material e massa diferentes. A outra foi uma simulação desenvolvida numa folha de cálculo em Excel (Silva, 1998). Nesta simulação os alunos podiam explorar de que forma variava a situação de equilíbrio do sistema composto por um corpo imerso num fluido (energia potencial mínima), modificando vários parâmetros associados ao corpo e ao fluido (Figura 1, gráfico da esquerda). O professor distribuiu um guião de atividades que definiam de maneira geral a dinâmica da aula. O professor seguiu de perto o trabalho dos alunos, pedindo-lhes para explicarem o desenvolvimento das tarefas em detalhe de forma a envolvê-los na atividade. Forneceu informação acerca de como funcionavam as SC, em particular da segunda. Estas atividades decorreram em aulas práticas / laboratoriais após esta temática ter sido tratada numa aula teórico-prática, onde os conceitos densidade, massa, volume e energia potencial foram abordados. O Vídeo 2 mostra um resumo desta aula; pode nele ver-se algumas das tarefas propostas pelo professor e observações efetuadas pelos alunos no decorrer das atividades.
Vídeo 2 – Resumo da aula do Professor B.
Figura 1 – Visualização da simulação em Excel.
Categorização das Práticas Epistémicas
A partir da análise das NM (processo de categorização) foram identificadas algumas PE relacionadas com a utilização de SC em sala de aula (Tabela 3), já identificadas e tratadas em trabalhos anteriores (Pinto et al., 2012).
Tabela 3 – Categorias das PE dos alunos
As PE ligadas a traços de mediação dos professores ao utilizar as SC que foram registadas em cada caso ao longo da NM de cada um encontram-se na figura 2.
Figura 2 – Número de PE registadas em cada caso
Destes resultados constata-se que as PE mais frequentes durante a utilização das SC em sala de aula, para ambos os tipos de mediação, foram as Interpretar (I) e Modelar (M). Estas PE estiveram presentes em ambos os casos de forma expressiva surgindo de forma ainda mais acentuada no caso B. Olhando ainda para as PE que ocorreram em ambos os casos constata-se em relação a Comunicar (Comm), Identificar as condições empíricas (IEC) e Relacionar (R) que são preponderantes no caso da mediação em A ao passo que as PE Manusear factualmente (HF) e Trabalhar conceptualmente (HC) o são mas na mediação do caso B.
Identificam-se ainda PE associadas a apenas um dos casos. A mediação desenvolvida no caso A permitiu aos alunos desenvolverem as PE Formalizar o modelo (FM) e Prever (P) o que não aconteceu no caso B. Por outro lado a mediação desenvolvida neste caso suportou as PE Questionar (Q) e Utilização de mediadores simbólicos (USM).
O caso B tem uma frequência superior de PE durante a sua mediação.
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
As PE que ocorrem mais frequentemente no dois casos são – Interpretar (I) e – Modelar (M). Estas PE apresentam um número de registo superior às restantes e não são dependentes nem do caso, nem do contexto. De facto são práticas absolutamente necessárias de forma a que os alunos desenvolvam o seu conhecimento através deste tipo de recursos. Os alunos terão de interpretar os dados, imagens e gráficos que as SC fornecem e têm de lhe dar significado. Por outro lado, devem ao mesmo tempo compreender a modelização que está por trás da variação dos parâmetros e grandezas que se encontram a estudar.
Embora não tão pronunciadas, as PE Comunicar (Comm), Identificar as condições empíricas (IEC) e Relacionar (R), também ocorrem com alguma frequência em ambos os casos. Estas já implicam algum à vontade no trabalho com as SC, de forma a relacionar as variáveis em estudo e conseguir comunicar o desenvolvimento do seu conhecimento aos colegas e ao professor. Estas PE indicam que a aprendizagem dos alunos está a ser potenciada. A mediação desenvolvida no caso A parece favorecer mais a ocorrência destas PE. Pelo contrário, as PE Manusear factualmente (HF) e Trabalhar conceptualmente (HC) parecem ser mais favorecidas pela mediação do caso B. O acompanhamento mais próximo do professor, a existência de um guião, a atitude deliberada do professor em explicar a CS (em particular no caso da simulação de Arquimedes) fundamentam este resultado.
Outras PE estão mais relacionadas com características particulares da mediação do professor. Duas delas são apenas registadas no caso B: Utilizar mediadores simbólicos (USM), cuja presença pode ser explicada pelo contexto de uma das SC utilizadas, que incluía lidar com gráficos, tabelas e equações de forma a completar as tarefas propostas pelo professor; a outra – Questionar (Q) que poderá ser considerada como uma atitude normal em alunos que querem compreender como determinado modelo funciona.
No caso A o professor queria que os alunos fizessem previsões sobre o que ia acontecer para depois formalizarem um modelo teórico. No caso B, o modelo foi utilizado como ponto de partida e a primeira necessidade dos alunos era perceber o seu funcionamento.
Assim, dependendo da intencionalidade do professor, os alunos do caso A trabalharam essencialmente para obter um modelo que explicasse o fenómeno observável e os alunos do caso B utilizaram um modelo para compreender o seu funcionamento em condições diferentes. Sendo as SC um recurso relevante no ensino e aprendizagem de ciências, com o qual é possível envolver os alunos em tarefas particulares muito relevantes para o desenvolvimento da sua aprendizagem, também se revelam neste estudo promotoras do desenvolvimento de práticas epistémicas. Os casos estudados mostram que algumas dessas PE tais como Interpretar, Modelar e Relacionar estão diretamente relacionadas com o facto de os alunos terem que interpretar dados, imagens e gráficos que as SC fornecem, para lhes dar significado; ao mesmo tempo que necessitam de compreender a modelização que está por trás da variação dos parâmetros e grandezas que se encontram a estudar, relacionando-os com os fenómenos físicos envolvidos. Este estudo mostra que estas PE podem ser facilmente alcançáveis com o uso estruturado de SC, através de uma mediação adequada do professor, contribuindo de forma significativa para a qualidade da aprendizagem dos alunos e da sua formação geral. Em particular, este estudo permite associar a PE como Formalizar o modelo (FM), Prever (P) e Relacionar (R) uma mediação no uso de SC que dá tempo e autonomia aos alunos desafiando-os para a exploração de tarefas abertas. Por outro lado uma mediação no uso de SC que acompanha o trabalho dos alunos de perto, com recurso a um guião de atividades, favorece PE como Questionar (Q) e Utilização de mediadores simbólicos (USM).