Sensos-e Vol: III Num: 1  ISSN 2183-1432
URL: http://sensos-e.ese.ipp.pt/?p=10389

Teatro como pedagogia social e prática de desenvolvimento pessoal – Brecht e a Educação Social

Author: Julia correia Afiliation: ESE/PP

Abstract: For Brecht, theatre pedagogy is translated on speculation about a critical investigative theme of human and social life, which should result in learning something new through theatre techniques and methods and dramatic and theatrical conventions. Brecht was aimed at democratization while searching for other theatrical spaces and other possible audiences to whom, in fact, the theater was necessary and for whom the theatre was actually seen as aesthetic fruition space but also as a space for critical reflection and action in the face of contemporary issues.
Thus the educational proposal of learning plays emerges as a pedagogical proposal that is not intended for conventional viewers, but rather groups of participants who learn by self-taught and from the critic questioning caused by dramatic action.

Keywords: : Education, Pedagogy, Social, Theatrical, Brecht

Teatro como pedagogia social e prática de desenvolvimento pessoal – Brecht e a Educação Social

Author: Julia correia Afiliation: ESE/PP

A peça didática de B. Brecht – Uma Teoria Pedagógica

Os textos dramáticos, O Voo dos Lindbergh; A Peça Didática de Baden-Baden Sobre o Acordo; O Que diz Sim; O que diz Não; a Exceção e a Regra; e ainda, Santa Joana dos Matadouros e a Mãe, que ilustram processos de aprendizagem, foram elaborados por B. Brecht num espírito de trabalho coletivo, tanto na escrita dos textos como no trabalho de experimentação cénica, que visava a encenação e montagem do espetáculo. Surgindo, assim, como exemplos de novas experiências dramatúrgicas e novas propostas cénicas mas que, se estudadas no contexto geral dramático da obra de Brecht, revelam fazer parte de um plano didático/pedagógico mais vasto que atravessa a sua obra, nomeadamente o seu Teatro Épico.

Piscator, ao demonstrar o potencial estético, social, político e cívico do teatro, com as suas inovações cénicas e o seu interesse por temas políticos lança o interesse teórico pelo novo papel do espectador para o novo teatro que emerge: “Um Novo Teatro” para “um Novo Espectador”. Nesta nova relação espetáculo / público, todos, espectadores e criadores teatrais se encontram unidos num mesmo objetivo e ideal de transformar o mundo para uma nova e melhor proposta de sociedade. Devemos lembrar que nesta altura, na Alemanha, perante uma maioria silenciosa e amorfa de cidadãos, se trava uma luta intensa entre duas visões de como a sociedade pode e deve estar organizada. De um lado a visão do Partido Nazi alemão e do outro, a visão socialista, que partidos e movimentos da esquerda alemã da altura sustentavam.

O espectador era agora alguém que deveria desenvolver a sua atitude crítica e interventora em relação ao mundo e o teatro poderia contribuir para a construção dessa nova atitude, como Vera Sampaio Lemos diz:

Este conjunto de peças não procura escamotear o seu carácter formativo, antes se afirma como parte de um programa de educação estética e política cuja finalidade não é apenas a aplicação mas sobretudo a transformação do mundo. (Lemos, V. S., 2005: 8)

Estas peças de teatro (ver1)(ver2não foram estreadas em teatros convencionais, apA peça didática de B. Brecht – Uma Teoria Pedagógica

Os textos dramáticos, O Voo dos LindberghA Peça Didática de Baden-Baden Sobre o Acordo; O Que diz Sim; O que diz Não; a Exceção e a Regra; e ainda, Santa Joana dos Matadouros e a Mãe, que ilustram processos de aprendizagem, foram elaborados por B. Brecht num espírito de trabalho coletivo, tanto na escrita dos textos como no trabalho de experimentação cénica, que visava a encenação e montagem do espetáculo. Surgindo, assim,como exemplos de novas experiências dramatúrgicas e novas propostas cénicas mas que, se estudadas no contexto geral dramático da obra de Brecht, revelam fazer parte de um plano didático/pedagógico mais vasto que atravessa a sua obra, nomeadamente o seu Teatro Épico.

Piscator, ao demonstrar o potencial estético, social, político e cívico do teatro, com as suas inovações cénicas e o seu interesse por temas políticos lança o interesse teórico pelo novo papel do espectador para o novo teatro que emerge: “Um Novo Teatro” para “um Novo Espectador”. Nesta nova relação espetáculo / público, todos, espectadores e criadores teatrais se encontram unidos num mesmo objetivo e ideal de transformar o mundo para uma nova e melhor proposta de sociedade. Devemos lembrar que nesta altura, na Alemanha, perante uma maioria silenciosa e amorfa de cidadãos, se trava uma luta intensa entre duas visões de como a sociedade pode e deve estar organizada. De um lado a visão do Partido Nazi alemão e do outro, a visão socialista, que partidos e movimentos da esquerda alemã da altura sustentavam.

O espectador era agora alguém que deveria desenvolver a sua atitude crítica e interventora em relação ao mundo e o teatro poderia contribuir para a construção dessa nova atitude, como Vera Sampaio Lemos diz:

Este conjunto de peças não procura escamotear o seu carácter formativo, aarecendo muitas vezes como experiências estéticas inovadoras, ligadas a apresentações musicais ou a experiências de Rádio Amador e indicadas como formas de expressão expandidas dos novos meios técnicos da rádio e do cinema. Utilizam-se projeções de documentos de excertos de filmes e sons gravados e são produzidas no âmbito de Grupos de Teatro Operário (A Mãe e S. Joana dos Matadouros) bem como em festivais de música ou associações musicais.

O objetivo didático destas peças reside, além do mais, em exercícios formais desenvolvidos no campo da dialética e do Marxismo, sendo, a aprendizagem do pensamento dialético e da reflexão política sobre a natureza e o exercício do poder, a sua principal finalidade.

Hoje, aparecem aplicações destas peças em contextos experimentais e formativos no âmbito dos Estudos do Teatro em escolas e universidades em que as experiências, anteriormente de ensino e aprendizagem política, realizadas em sindicatos e associações recreativas, são transformadas em exercícios da prática da representação crítica e da construção de estruturas dramáticas reflexivas visando um processamento metodológico e estético de pedagogia política

As peças didáticas, quando estudadas no contexto geral dramático da obra de Brecht, revelam fazer parte de um plano didático/pedagógico mais vasto que atravessa a sua obra, nomeadamente o seu Teatro Épico.

O Teatro Pós Dramático não exclui o dramático; só o retira do centro já que é a dramaturgia “dramática” que é exclusiva. Existem outras lógicas, para lá do dramático como é entendido no fim do séc. XVIII, tal como Brecht acabará por teorizar e fixar, sendo disso exemplos a colagem e a montagem que ele utiliza na construção literária e que transfere para a construção cénica.

A Performance, conceito muito largo que abrange muitas géneros teatrais incluindo o Teatro do Oprimido (ver1), agrega formas experimentais com diferentes linguagens da arte e encontra-se hoje no centro da reflexão teórica, podendo nós, no âmbito deste estudo e atendendo às investigações já realizadas, levantar a questão de que as peças didáticas de Brecht, que ensinam a reflexão sobre assuntos e temas da vida coletiva através da vivência dos participantes, poderem ser por um lado, a inspiração teórica e prática do Teatro do Oprimido de Boal e por outro, serem incluídas precisamente nesse género expandido chamado Performance.

O performer apresenta a sua própria presença e algo mais. E a sua representação é fruto de uma mistura do entendimento intelectual racional com o processo oficinal da interpretação de personagens que joga. Esta intromissão da pessoa do ator/performar na representação permite a existência de mais conteúdo de comunicação e transforma o ator num coautor, situação que é comum nas peças didáticas e no Teatro do Oprimido.

Tal como nas peças didáticas do Brecht que ensinam a reflexão sobre assuntos, através da vivência dos participantes, encontram-se no Teatro do Oprimido as questões abordadas que podem ser, ou fazer parte, das Tragédias das vivências multiculturais que ultrapassam as possibilidades oferecidas pela tragédia/conflito – o drama, e entram pela tragédia/ transgressão. Estão neste caso conflitos que estão no limite e que se referem a questões de transformação identitária de comportamentos ou de instituições. Tanto num caso, como no outro, verificamos que se estabelecem pontes entre a arte teatral e a reflexão intelectual.

No seu conceito de fábula, Brecht indica a pesquiza dos mecanismos sociais, sendo a função do debate e a exploração dos meandros do fazer teatral e dramático do espetáculo que, com a integração dos resultados dessa pesquiza constitui o método brechtiano.Para Brecht, o teatro mantém-se teatro, mesmo quando é instrutivo e para ele, os conceitos contemplar, reconhecer e descobrir, apareciam ligados ao teatro e ao trabalho de investigação científica,(*).

Em Eriksson (2009), as peças didáticas que Brecht escreveu entre 1929 e 1932 são consideradas formas do género Applied Drama / Theatre uma vez que são um género dramático baseado em processos em que os participantes exploram as relações entre a ação, a reflexão e a poética teatral.(*)

São assinaladas, por este autor e outros, relações óbvias entre o modelo da peça didática brechtiana e o teatro educacional britânico que emerge a partir do meio dos anos sessenta do séc. XX e que, por sua vez, se projeta no Process Drama e evidencia, como já foi por nós notado, semelhanças com modelos de aplicação do Teatro do Oprimido.

Lawrence (1996) considera que existem vários pontos comuns entre a proposta brechtiana das peças didáticas e o Manto dos especialistas de Heathcote (*), uma vez que, em ambas as propostas, a tarefa principal é mostrar como no mundo as coisas mudam ou podem ser mudadas e que em ambos os casos, os seus espectadores são participantes que se tornam num coletivo de indivíduos capazes de pensar, raciocinar, de fazer julgamentos e intervir ativamente na representação.

No Manto dos Especialistas,(*)   os estudantes sabem que estão numa situação que aceitaram jogar e que tudo se trata de uma ficção, reconhecendo o poder que têm nessa ficção, para decidir, dirigir e atuar.

Por sua vez o Espectador dentro da Cabeça.(*) Como é proposto por Heathcote (ver1) (ver2), deve “acordar” e permanecer na consciência de cada um dos jogadores (alunos) de forma que possam agir conscientemente no mundo da ação ficcional, reconhecendo e assumindo a responsabilidade pelos atos e decisões tomadas como se estivessem a agir num mundo real e assim possibilitando que o seu entendimento e o seu conhecimento se aprofundem através do uso das convenções e das regras dramáticas que são já do conhecimento do grupo de intervenientes.

A peça didática não propõe uma doutrina, não contém qualquer prescrição. Não ensina mas visa, através da participação no jogo, criar uma situação de aprendizagem, ao colocar em cena modelos de ação social que são experimentados, questionados e reinventados cenicamente.

Para Brecht, a arte teatral devia despertar a atividade reflexiva e proporcionar conhecimentos resultantes da reflexão sobre o que se passa em cena mas sem que a empatia despertada pelas cenas em palco pudesse obliterar o entendimento dos factos e dessa forma impedir a produção do pensamento e do juízo crítico.

Na nota sobre a peça didática de Baden Baden de 1930, Brecht refere: 

Tal como nós, os meus amigos entendem o ensino enquanto processo, isto é, enquanto processo de adaptação às circunstâncias (…) só param com a morte e não se ofendem quando alguém os instrui. Estão de acordo em se deixarem instruir não só pelas circunstâncias mas também por homens (…) mas os meus amigos querem ter conhecimento das coisas pela via da experiência, quer dizer da experiência sensível, pela via do vivido, eles querem estar implicados, não confrontados. Por eles devemos defender o conceito de peça didática, duma arte dramática identificável como pedagógica. Defendê-lo-emos aprofundando-o. A questão não é: é preciso instruir? A questão agora é: Como é que se deve instruir e aprender.

A estrutura épica, do teatro proposto por Brecht, apresenta-se fragmentada e cada parte contem um “todo”, mantendo uma unidade temática própria e constituindo-se como subtema do todo que constitui a peça, ou seja, as partes ou cenas aparecem ligadas entre si pelas ideias contidas no todo que se manifestam nas unidades, cena.

Ao contrário da obra dramática, uma obra épica deixa-se recortar com uma tesoura em partes capazes de conter uma vida própria” (Brecht,1999:258).

As cenas apresentam uma autonomia e não se relacionam em termos de causalidade e consequência. Esta estrutura fragmentada apresenta uma ação dramática que pode ser interrompida e investigada através da reflexão e da experimentação de outras alternativas que encaminham a resolução da ação dramática em causa, evitando assim desenvolvimentos deterministas e conceções do mundo imobilistas. Afirmando desta forma a possibilidade que o homem tem de compreender e de mudar o curso dos acontecimentos históricos.

No Teatro Épico, na conceção brechtiana, a encenação bem como os outros sistemas de significação que integram a linguagem teatral, tais como a cenografia, a iluminação de cena, a sonorização, o guarda-roupa etc., assumem um papel narrativo juntamente com o texto literário dramático e contribuem para que a história (a fábula) possa ser contada de uma forma crítica.

Preside, a este género teatral, a intenção sempre presente de incluir o “pano defundo” social dos acontecimentos das cenas da narrativa dramática que se constrói, afirmando-se, desta forma, a dimensão social e a dimensão histórica dos acontecimentos apresentados. O gesto humano é surpreendido na sua dimensão social e esta é a razão por que o ator devia apresentar o personagem como se este fosse uma terceira pessoa equidistante do ator e do espectador. É esta, a atitude demonstrativa do ator, preconizada por Brecht, que contém a possibilidade investigativa.

Brecht na sua obra, Escritos sobre o Teatro (1983), propõe que o espectador se distancie e reflita sobre o que vê, em vez de deixar que a sua consciência se anule submersa no envolvimento emocional escapista que inviabiliza o raciocínio. São as ruturas e interrupções, propostas por Brecht, em forma de técnicas distanciadoras, que desvinculam o espectador do processo de identificação emocional, dando lugar a um processo de reflexão que pode e deve ser, uma reflexão crítica.

No Teatro Épico de Brecht, tal como se verifica nas peças didáticas, o indivíduo representa um grupo ou toda a humanidade e assim é revelado o rasto social e histórico do humano (Desgranges,2006).

Brecht propõe que o ator deve adotar posturas em que mostra como o personagem é e o que ele diz, e chamar de alguma maneira a atenção do público para as atitudes e opções do personagem. Como que, em vez de falar pelo personagem, o citasse, criando assim espaço para a “inspeção” e reflexão sobre as motivações e as consequências das ações visionadas.

A Teorização da Peça Didática Brechtiana

No início dos anos setenta do séc. XX, R. Steinweg desenvolve a “teorização” da teoria da peça didática brechtiana a partir de um novo olhar investigativo sobre os escritos brechtianos e considera-a como a matriz do teatro do futuro propondo uma nova compreensão das possibilidades que as peças didáticas oferecem.

A sua proposta centra-se na participação efetiva do espectador e caracteriza-se por ser fundamentalmente uma atividade em que os participantes seriam, ao mesmo tempo, observadores e atores que, à vez, experimentam algo pela ação física e através da ativação de sentimentos e das emoções, passando à reflexão sobre o acontecimento em que se tomou parte, para de seguida ocuparem o lugar do observador da nova representação, agora executada por outro grupo de espectadores/atores. Segundo Steinweg, desta forma, mecanismos de aprendizagem são ativados evidenciando-se o carácter pedagógico do jogo de simulação do acontecimento e “À questão sobre o que se aprende numa peça didática, ele (Brecht) responde (ia) que os aprendizes são aqueles que estão jogando e participando, não o público” (Lehman, 2006:13).

Estas peças de Brecht não propõem a divulgação ou a propaganda de doutrinas políticas ou de ensinamentos de qualquer espécie e é o próprio Brecht que, ao traduzir o conceito de peça didática para inglês, adota a forma de Learning play (peça para aprender) deixando crer que o seu entendimento de peça didática, seria o de “processo de aprendizagem” no qual se pode introduzir alterações ou inovações, de forma a produzir novos entendimentos sobre os conteúdos abordados nas peças.

Um processo que possibilitasse ao indivíduo “tomar conhecimento das coisas pela via da experiência sensível” Brecht (1989, II: 344).

Brecht escreve e realiza experiências com as peças didáticas, no período de tempo que vai entre 1929 e 1932, o período precisamente em que Hitler sobe ao poder e é instaurado o regime nazi na Alemanha. Nesta altura, Brecht toma conhecimento e priva com escolas que propunham pedagogias de vanguarda, nomeadamente na Rússia, onde o teatro tem o lugar que a educação progressista do princípio do séc. XX lhe concede. (Koudela 1991), sendo estas experiências inicialmente pensadas e trabalhadas com crianças e jovens (O Que Diz sim e o Que diz Não) (*) ou com Grupos de Teatro de Operários. A peça O Voo de Lindberg, que é uma peça sobre o valor da ação humana que transcende heroicamente o patamar da vulgaridade, e a peça A Importância de Estar de Acordo foram criadas para serem produzidas sob a forma de teatro radiofónico, por grupos de radioamadores, por grupos corais ou grupos de teatro Agit – prop(*) .

Estes são outros meios, fora do circuito comercial, de produção teatral com que Brecht visa a democratização teatral ao procurar outros espaços e outros públicos para quem o teatro fosse necessário e fosse um espaço de fruição estética e também um espaço de reflexão e atuação em face de questões contemporâneas No seu diário de trabalho (1976:217) Brecht escreve: “a experiência demonstra que as crianças compreendem, tão bem quanto os adultos, tudo o que merece ser compreendido”. Por esta altura na Alemanha estavam recenseados catorze mil conjuntos corais com mais de quinhentos mil participantes entre os quais setenta por cento eram operários (Desgranges, 2006). Não é de um conhecimento que deve ser transmitido mas sim de uma aprendizagem que seria produzida a partir do contexto experimental e experiencial. Assim, é do vivenciar e do participar em cenas dramáticas concebidas no processo de construção da encenação e da crítica aos discursos e comportamentos dos personagens, bem como da observação da própria atuação e da observação da atuação dos outros que o trabalho teatral, com a peça didática, gera atitudes críticas e comportamentos políticos.

Para Koudela (1991), Brecht teria construído o texto da peça didática como um Modelo de Ação e não como uma obra acabada. A ideia de “modelo” de ação sugere um esquema que pode e deve ser preenchido de diversas maneiras pelos participantes, fazendo emergir propostas que devem ser discutidas e em que os jogadores, ao mesmo tempo que estão a estudar e a compreender a obra e os seus conteúdos, estão a participar na criação teatral dessa mesma obra.

Nas peças didáticas podemos observar a exacerbação dramática dos factos narrados que encaminham para um desfecho fatal (Desgranges,2006). Aqui a questão principal que se põe aos participantes é: Por que razão a história se encaminha desta forma e não de outra? E são então, as opções e decisões tomadas no decurso da ação dramática, juntamente com as conjunturas contextuais que podem fornecer explicações.

Desta forma as atitudes dos personagens, ao mesmo tempo que as atitudes dos participantes face a situações semelhantes na vida real são escrutinadas e são sujeitas a análise. 

Estas exacerbações são artificialmente construídas – podem, portanto ser evitadas logicamente. A necessidade trágica lhes é tirada. Tal construção visa desencadear o processo de discussão e investigação no grupo. A partir da “crise” busca-se nos modelos sociais e papéis típicos, aquele erro que deu origem ao desenvolvimento fatal (Koudela,1991:94).

Na medida em que o modelo de ação não é um texto acabado, a improvisação (*) é o recurso mais relevante para desenvolver a peça didática, não só, na criação de outras cenas que se podem tornar fundamentais no processo de construção/compreensão, mas também, para modificar o texto da peça. A improvisação, embora sendo livre, é sempre à volta do texto da peça (ou do texto modelo de ação) e vai incorporando os novos elementos conquistados com os exercícios improvisacionais e com a reflexão desenvolvida através das repetições.

Desgranges (2006) anota que a revisão da peça didática feita por Steinweg deve-se a um interesse geral, na década de sessenta, que é suscitado por novas investigações teatrais que procuram novas relações com o público. Ao aderir a esta nova demanda investigativa, Steinweg encontra nestas peças brechtianas conteúdos que muito têm contribuído para a prática teatral recente e servido de estímulo a propostas de teatro coletivo, ao mesmo tempo que imprimiu novos desenvolvimentos à compreensão das relações entre teatro e pedagogia.

Para Desgranges (2006), o teatro que é proposto na teorização da peça didática, também pode ser compreendido como um teatro que pretende produzir uma arte do espectador, que é uma arte que requer aprendizagens e a exercitação através de experiências teatrais. Um teatro que implica metodologias e procedimentos pedagógicos que visam a iniciação do espectador à linguagem dramática e teatral e ao raciocínio crítico e que, ao mesmo tempo, promove o gosto pelos “meandros” do seu fazer artístico pela arte teatral. 

Um Método de Trabalho com Modelos de Ação a partir das Peças Didáticas

Como vimos, as peças didáticas de Brecht são objetos literários que contêm qualidades pedagógicas e são especialmente destinados a amadores (*), em parte devido ao trabalho de Steinweg, mas também à pesquisa marxista desenvolvida na R.D.A. – República Democrática da Alemanha, sobre o mesmo tema.(*) Desta investigação saíram conclusões que vieram colocar a peça didática na ribalta educacional enquanto pedagogia dialética que assim se constitui como educação política, um contributo para a educação estética teatral e uma confirmação de que a prática do jogo teatral pode promover a aquisição do conhecimento.

Brecht explicita no fragmento “A Grande e a Pequena Pedagogia”(*). Que o seu projeto pedagógico, ao qual ele chama, Pequena Pedagogia, inicialmente deve ser desenvolvido com amadores visando a democratização do teatro e o exercício da reflexão crítica sobre temas da vida quotidiana incluindo nesta sua proposta as peças didáticas onde os papéis devem ser construídos pelos participantes.

De acordo com Steinweg (1992) e contra todos os mal entendidos existentes sobre as peças didáticas, a peça didática e a sua teoria contêm a proposta revolucionária de Brecht.

 “Autoconhecimento, exercício artístico coletivo, participação ativa, são conceitos que podem ser encontrados já em 1930, na teoria da peça didática” (Koudela,1992:33).

Steinweg, na sua obra A Peça Didática – Um Modelo de Teatro Socialista. A teoria de Brecht sobre a Peça Didática, de 1972 (cit in Koudela 1992) concebe a regra básica da peça didática que subdivide em quatro aspetos fundamentais: (1) A peça didática é para Brecht sinónimo de exercício coletivo; (2) visa o autoconhecimento; (3) auto significa um Eu coletivo e não um Eu individualizado; (4) o público não é passivo mas atuante.

Na prática, com a peça didática o ator representa para os outros e para a sua própria aprendizagem e a encenação resulta das decisões de uma direção coletiva obtida através da discussão que relaciona as experiências da prática social dos intervenientes com os processos que ocorrem na fábula da peça.

No modelo metodológico, apresentado por Steinweg (1992), é indicado que o texto da peça didática não deverá ser abordado no início do processo do jogo e que as primeiras oficinas deverão ser preenchidas com jogos de expressão corporal, jogos sensoriais e jogos de dinâmica de grupo.

Por sua vez, Koudela (1992), ao descrever um procedimento de jogo com a peça didática considera que os grupos não devem ter mais de doze elementos de forma a evitar dificuldades de dinâmica de grupo. A prática do modelo de trabalho com a peça didática deverá tornar conscientes as atitudes pessoais, as consequências sociais de tais atitudes e a elaboração das questões subjetivas aí implícitas. Esta autora subdivide o procedimento com a peça didática em três fases:

1ª Perceção de situações, atitudes e gestos.

2º Transposição para cenas do quotidiano dos participantes e sua reflexão.

3ª Estranhamento e transformação.

Nesta proposta, o texto serve de estímulo para discutir, abertamente em grupo, aspetos da vida de cada um e os problemas assim apresentados são transformados em propostas de jogo e temas improvisacionais.

Retomando Steinweg (1992), podemos verificar que este autor estabelece uma sucessão de procedimentos na exploração do Modelo de Ação contido nas peças didáticas que é considerado, por nós, uma metodologia de trabalho que não se apresenta como um receituário de confeção teatral mas, pelo contrário, se reveste dos moldes investigativos necessários à descoberta artística e à descoberta de conhecimentos novos de vária ordem que podem ser formulados no decurso do processo.

Propõe este autor que, no início, o texto deve ser abordado de uma forma “estranhada”. Por exemplo, como se fosse dito por um bêbado ou com uma intenção fictícia e exterior ao texto. O que se pretende é brincar com o texto e não procurar o conteúdo certo ou a interpretação correta. Na fase seguinte o coordenador sugere que os participantes escolham uma das personagens (figuras) e imaginem uma forma de fazer a cena, que deve ser improvisada, mas já com alguns conceitos estabelecidos e sem que a improvisação seja planificada.

O objetivo desta segunda fase é constatar como as formulações individuais dos conceitos se combinam e se modificam a partir da interação.

Os participantes são divididos em atores e observadores que podem trocar de lugar e assumir à vez o lugar de ator ou espectador, sendo que os participantes/observadores têm uma função decisiva. Eles descrevem, após cada improvisação, o que presenciaram nos exercícios e as associações/lembranças que lhes ocorreram em relação às situações sociais.

O importante é que o observador possa permitir-se livres associações… e que elas não sejam colocadas de lado como inadequadas ou não pertencentes ao contexto. Aquele que acaba de comentar será atuante na próxima cena. Na prática com a peça didática, não há divisão de trabalho rígida. Todos jogam, dirigem e fazem comentários. (Steinweg, 1992:54)

Koudela (1992) anota equivalências entre os grupos de terapia cujo foco é a pessoa enquanto indivíduo com a sua história pessoal, as suas relações e a sua biografia e a peça didática onde são abordadas as experiências individuais e a subjetividade dos indivíduos participantes. Mas no último caso, o modelo de ação veiculado pelo texto obriga a um relacionamento e a uma reflexão sobre as determinantes sociais dos comportamentos subjetivos. “Trata-se do reconhecimento de situações sociais típicas, dos quais fazem parte, e sobre a possibilidade de transformá-las (…) ” (Steinweg, Op. cit:55).

Para delimitar o campo de jogo, este autor sugere a fixação de alguns papéis e que se deixe só em aberto o papel que no momento oferece maior interesse para os participantes.(*)

O importante é que os papéis fixados sejam experimentados algumas vezes seguidas pelas mesmas pessoas e que o papel, que permanece em aberto, seja apresentado de cada vez por um ator diferente. Os atores que interpretem este papel devem decidir e escrever rapidamente o que querem representar: Quem é? Onde se passa a cena? Quais são as circunstâncias exteriores? Quais são os objetivos do personagem? E do ator/ jogador? Que comportamentos ou relacionamentos ele quer experimentar? Ou testar?

Neste processo, é útil estabelecer verbalmente características básicas da atitude e da situação social que queremos perceber e descobrir, como podem ser modificadas. O texto deve ser mantido inalterado, mas pode ser acrescentado por pensamentos explícitos da figura representada na situação que se improvisa. Por vezes, é também útil encenar situações que foram relacionadas com o texto modelar, incorporando-se, assim, no jogo “a complexidade social para a qual o modelo do texto aponta de forma abstrata.” (Op. cit:59).

Nesta proposta de trabalho o estranhamento só é possível com uma observação e um entendimento prévio e rigoroso da situação modelo porque só aquilo que é nítido pode ser estranhado. Sendo na memória corporal que podemos elaborar o estranhamento quando trabalhamos teatralmente com a peça didática

É como se o próprio corpo, tronco e membros, guardasse o sentido social de gestos, tons e posturas corporais (…) É a consciência que, incentivada pelos processos de sentimento intensivo na elaboração e repetição de gestos, trabalha de fora para dentro e supera a contradição entre atitude exterior e interior. O gesto compreendido torna-se símbolo apresentativo (Op. cit:61).

Mas a reação e a invenção espontânea de gestos e atitudes não é suficiente, já que o motivo da pesquisa é o modelo do comportamento, da atitude social e da Historicização dos factos. As cenas são primeiro criadas segundo formas de criação coletiva e depois são repetidas várias vezes, tornando-se o apuramento da representação, um meio de conhecimento e transformação.

Steinweg (Op. cit.) sugere a utilização de variedades de Jogos de estátuas, de Retratos parados, de Atitudes congeladas e a imitação de atitudes e cenas (*). Durante a fase da reflexão e depois da cena terminada, todos, atores e imitadores (os que permaneceram na plateia como observadores) relatam as associações que fizeram quando da realização das Estátuas e dos Quadros parados. As perguntas que se colocam são: O que chamou a nossa atenção ficou esclarecido? O que é que interessa, precisamente, neste momento?

Temas retirados das cenas podem ser trabalhados em separado, criando-se quadros parados e estátuas que recortam cenas do quotidiano possíveis de serem experimentadas/experienciadas, mas “não alegorias ou construções simbólicas, que apenas reproduzem o que já acreditamos ter compreendido” (Op. cit:63).

Tal como no Sistema Anglófono ou no Teatro do Oprimido que utilizam a técnica de trabalho com estátuas, este processo tem a vantagem de simplificar a complexidade do conteúdo da cena em estudo, ao focar uma pequena unidade onde, assim, podem ser apreciadas e ajuizadas as reações, as ações, as atitudes e os comportamentos, bem como as decisões de ordem cénica necessárias à explicitação estética.

 Coordenação do Jogo Teatral com a Peça Didática

A prática de trabalho com o modelo de ação da peça didática é uma prática democrática, apesar da existência de um coordenador de jogo que não tem o direito de decisão, mas que propõe a sequência processual e vela pelo respeito das regras enunciadas. O coordenador, que deve manter-se em segundo plano “em nome do interesse da descoberta do grupo” (Op. cit:69) deve observar o encaminhamento do jogo e introduzir impulsos. Na peça didática todos são encenadores.

Steinweg aponta os pontos críticos em que o coordenador do jogo deve intervir:

  • Nos casos em que os participantes expressem valorações estéticas ou assinalem aspetos que faltam, o coordenador deve reforçar a ideia de que os observadores devem falar sobre o que viram e devem produzir associações.
  • Quando se instala entre os participantes a ideia da “interpretação correta do texto”, o coordenador deve tornar claro que todas as interpretações são significativas para o processo do jogo mas que é na parte do trabalho, em que o grupo exercita o “estranhamento” e a “transformação” que é estabelecida a forma mais adequada de interpretação.

  • A interpretação, exceto nos momentos de planificação em pequeno grupo, é alcançada através do jogo não das “conversas” que possam surgir.

  • No fim de todas as etapas do processo, deve proceder-se a um momento de reflexão/avaliação. Pretendendo-se anotar as transformações das relações entre os participantes ocorridas durante a oficina, mas sem que se caia no falar psicologizante sobre os medos e os sentimentos de elementos do grupo. É a comunicação das perceções que nos interessa para o avanço do jogo.

  • Visa-se a transformação no quotidiano. No que diz respeito a uma consciência modificada em relação a certos aspetos da própria pessoa ou de relações sociais, sobretudo no que diz respeito à perceção, reflexão e capacidade de ação face a mecanismos de dominação e de exercício do poder (e também o que é por nós exercido). Pois estes aspetos são tematizados praticamente em cada cena das peças didáticas” (Op. cit:73).O objetivo desta abordagem metodológica à peça didática brechtiana é conseguir que os participantes vivenciem e investiguem as contradições sociais a partir de si próprios e promovam ações políticas transformadoras. Para Koudela, a razão principal para a introdução do texto da peça didática na Pedagogia do Jogo Teatral é a possibilidade de desenvolvimento da consciência humana, de uma forma, que os jogadores aprendam a atuar com consciência política, ou seja “ uma atuação que remeta a relações humanas e sociais” (Koudela,1991:159).Quanto a nós, será a fundamentação pedagógica bem como a desconstrução metodológica que Steinweg nos propõe na sua “teorização” da teoria da peça didática de B. Brecht que nos parece da maior importância divulgar, pela sua pertinente atualidade no trabalho a realizar com comunidades, no espectro da educação social e na educação dos sujeitos/cidadãos, através de práticas artísticas/ teatrais comunitárias. Divulgação essa, para a qual pretendemos contribuir com este nosso trabalho.


Referências

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