Sensos-e Vol: 0  ISSN 2183-1432
URL: http://sensos-e.ese.ipp.pt/?p=4269

Formação Valorativa dos Educadores Sociais. Princípios, Construtos Teórico-Conceptuais e Metodologias

Autor: Sofia Veiga Afiliação: ESE/IPP
Autor: Hugo Monteiro Afiliação: ESE/IPP

Resumen: A Educação Social, sendo uma profissão claramente valorativa, exige uma formação também ela valorativa. Na Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto, as questões axiológicas são particularmente cuidadas no currículo de formação da licenciatura de Educação Social, em particular na unidade curricular de Formação Pessoal e Social, a qual trabalha de forma multidisciplinar e plurimetodológica estas questões. O presente artigo visa então partilhar os construtos teórico-conceptuais que alicerçam esta disciplina, assim como as metodologias privilegiadas no processo de ensino-aprendizagem, com destaque para a metodologia sociodramática. Conclui-se o mesmo com uma reflexão sobre a pertinência, potencialidades e constrangimentos de uma unidade curricular de esta índole.
Palabras-Chave: Educação Social, Formação Pessoal e Social, Valores, Sociodrama

Abstract: Social Education as a clearly ethical profession requires an axiological training. In the School of Education at the Polytechnic Institute of Porto, the axiological questions are particularly cared on the training curriculum of the Social Education grade, particularly in the course of Personal and Social Education, which works these issues in a multidisciplinary and plurimethodologial way. This article seeks to share theoretical and conceptual constructs that underpin this discipline, as well as the privileged methodologies in the teaching-learning process, especially the sociodramatic methodology. It concludes with a reflection on the relevance, potentialities and constraints of a course of this nature.
Keywords: Social Education, Personal and Social Training, Values, Sociodrama

Formação Valorativa dos Educadores Sociais. Princípios, Construtos Teórico-Conceptuais e Metodologias

Autor: Sofia Veiga Afiliação: ESE/IPP
Autor: Hugo Monteiro Afiliação: ESE/IPP

Introdução

O encontro inevitável entre as dinâmicas de trabalho psicossocial e as questões de natureza ético-valorativas suscetibiliza problemas de saborosa complexidade teórica, mas também de alarmante repercussão prática. Desde logo, a postura de relação atuante sobre o Outro – comum a qualquer profissão de relação e, como tal, inerente à Educação Social – convoca problemas de (as)simetria e de horizontalidade, de saberes e de poderes, de regulação ou de transformação… cujo desenvolvimento reconduz para definições de profissionalidade, posturas pessoais e organizacionais, inscrição da pessoa e do/a profissional em contexto e situação.

Não é imediata nem direta a relação ética como “movimento pendular entre a universalidade das leis e a singularidade de cada situação e de cada rosto” (Carvalho & Baptista, 2008: p.19), sendo esta justamente uma das dimensões que mais exigirá uma postura crítica e interventiva da parte da pessoa como profissional e do/a profissional como pessoa. A tensão entre o universal – onde a ocidentalidade, mais por conforto do que por critério, vem sedimentando o plano dos Direitos Humanos, das liberdades ou das democracias – e o singular parece surgir como problema perene, alertando para a permanente assimetria entre leis e pessoas, entre teorias e práticas, entre Cultura e culturas. Em causa o sempre delicado (e irresolúvel?) equilíbrio entre universal e singular, que não permite a confortável mas ingénua resposta relativista, em que os desígnios do singular são validados cegamente, mas que também não se resolve na solidez universalista, cujo perigo de clausura no formalismo das leis não dá espaço ao eclodir da contingência, das linguagens locais ou das respostas minoritárias como formas de afirmação efetiva. O esforço discursivo da universalização de valores, em nome de consensos mais fabricados do que permitidos (Monteiro & Ferreira, 2011), incorre a mais das vezes no que Baudrillard qualificou como “perigo mortal da elevação ao universal” (Baudrillard, 2006: p.49), em que os elementos universalizáveis acabam por contribuir para o adensar das desigualdades, numa sociedade de fragmentação, competitividade e lógicas de mercado que colonizam o próprio discurso dos direitos e valores. Mesmo quando advogam o contrário, valores artificialmente universalizados tornam-se novos fatores de desigualdade e de exclusão, funcionando como elementos fragmentados de ajuizamento e de rotulagem.

É justamente este cenário que suscita pensar, num quadro de confrontação e de liberdade discursiva, a vigência dos valores no seu existir histórico, social e pessoal, numa abordagem permeável aos contextos, às críticas e às diferenças que pontuam o existir de cada um/a.

Resumiremos tal desiderato em dois planos de justificação.

Um primeiro enquadramento, de natureza epistemológica. O reduto da pureza científica, fortemente questionado ao longo das últimas décadas, tem vindo a ser progressivamente posto em causa, numa energia menos dirigida para as formas da sua validação (tal como se impunha na arrumação da ciência Moderna) do que para formas outras de interpelação. Os discursos do saber são reinterpelados e, como tal, reassumidos por grupos, movimentos e discursos anteriormente apartados do reduto mais tradicional (e mais institucional) da produção científica. Assim sendo, aflora-se a exigência epistemológica de percorrer, criticamente, os limites artificialmente impostos aos discursos científicos, ensaiando-se uma hibridação epistemológica em prol das pessoas e dos grupos, nas suas formas de organização e de resposta, nos modos do seu habitar, na pluralidade dos seus valores inscritos no tempo. Assume-se genericamente o que Boaventura de Sousa Santos apelidou por “ecologia de saberes”, em que o processo de conhecimento se caracteriza pela abertura e pluralidade que o definem como interconhecimento, reconhecimento e auto-conhecimento (Santos, 2006: p.145).

Um segundo enquadramento, de natureza social. É reconhecida a natureza dinâmica da sociedade em que vivemos, invalidando abordagens cristalizadas e essencialistas geradoras de práticas sem reflexão e sem inscrição. É notório o desafio permanente de redefinição, que instiga a que se tome, como ponto de partida de qualquer abordagem científico-pedagógica consequente, o plano vivencial das pessoas, cada vez mais rebelde a tipificações redutoras e a exercícios identitários estagnados. A diversidade matiza a própria noção de identidade, hoje mais do que nunca permeável, relacional e mestiça.

Por outro lado, e olhando numa direção concêntrica, enquadramo-nos no centro da massificação do ensino superior, reconhecendo uma cada vez maior diversidade sócio-económica no seio da formação avançada, outrora exclusivo de grupos sociais mais favorecidos. Este fato vem adensar a emergência em tecer uma reflexão que se caracterize pela diversidade, fluidez identitária e pluralidade, em nome de um cenário inclusivo que não é um dado adquirido, mas uma construção partilhada.

Estes argumentos genéricos conferem sentido e inspiração a uma Unidade Curricular de Formação Pessoal e Social que, inserida no currículo de formação de uma licenciatura de Educação Social, tenta concretizar, de forma multidisciplinar e plurimetodológica, as preocupações aqui enunciadas.

Tentaremos incidir mais diretamente no seu âmbito no ponto seguinte do presente texto.

A Unidade Curricular de Formação Pessoal e Social

A unidade curricular anual de Formação Pessoal e Social, do segundo ano da Licenciatura de Educação Social, entrecruza princípios e fundamentos oriundos da psicologia e da filosofia, desafiando os alunos a uma reflexão teórico-conceptual e a um trabalho vivencial em torno das questões valorativas que orientam as suas atitudes e guiam os seus comportamentos a nível individual, social e profissional(*).

Questões teórico-conceptuais

O tratamento da questão dos valores, concretizado na dinâmica de uma aprendizagem valorativa, não vem sem polémica. Se enquadrada na tradicional abordagem de uma ‘Teoria dos Valores’, de acordo com a orientação doutrinal desenvolvida entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX, tal tratamento suscetibiliza o mesmo conjunto de críticas que ditou a desconfiança, senão mesmo a obsolescência, deste reduto conceptual para pensar a esfera do agir humano (Cf. Themudo, 2001: pp. 7-10). Friamente concebidos como redutos de oposição aos factos – a célebre oposição entre Facto e Valor, até há bem pouco tempo inclusa no próprio Programa de Filosofia do Ensino Secundário –, isolados como entidades conceptuais hierarquizáveis de acordo com um critério de pretenso rigor, os Valores afastavam-se da sua dimensão pessoal, social e relacional. Ao contrário, os Valores são aqui entendidos como construtos sociais, profundamente enredados, enquanto herança, fundamento e (re)construção na vida, nos projetos e na situação de cada um/a. Impõe-se particular cuidado:

i. É, quanto a nós, inegável a dimensão valorativa do agir humano, tornada mais evidente e mais emergente quando está em causa a formação de trabalhadores/as sociais cujo ênfase e sentido se jogam em torno de um imperativo educacional não assistencialista;

ii. Mas é igualmente indisfarçável o risco de alicerçar a necessária reflexão valorativa numa conceção equívoca, no fundamento em desuso ou no facilitismo de quadros terminológicos datados, que redundariam inevitavelmente não apenas na falta de adesão à realidade como na fratura entre teoria e prática.

A dupla inflexão deste cuidado reflete-se, necessariamente, no registo de pensamento proposto, que adquire particular relevo ao interpelar o âmbito da Educação Social. Ganha emergência a necessidade de se interrogar as sociedades atuais a partir de uma plataforma ética, de modo a reencontrar uma perspetiva humanizadora, inclusiva, democrática, plural e reflexiva que a todos os momentos se reengendra no exercício responsável e emancipatório de qualquer trabalhador/a social. A tendência é clara e, de certa forma, agudizada no confronto com o presente: Talvez nunca, como hoje, tenha sido tão urgente o âmbito da Educação Social. Um coro crescente de excluídos, as novas formas de exclusão, reinventadas dia-a-dia nas várias interrupções ou desistências de um Modelo Social Europeu, os quotidianos da mais severa alienação e perda de direitos… – desencadeiam ou intensificam a necessidade de se ler continuamente os vários planos ético-valorativos em que se redefine a sociedade. Impõe-se a competência para encarar reflexivamente uma realidade que cada vez mais se desajusta de soluções pré-fabricadas ou de receituários ad hoc, no posicionamento pessoal e profissional capaz de assumir ativamente um papel de construção, de crítica e de empoderamento, particularmente nos setores mais fragilizados do mundo em que vivemos. Na particular atenção para com o Outro, motor de qualquer processo de emancipação genuína, como para com as causas geradoras das desigualdades e desequilíbrios, o que aqui se reforça é um já assinalado “compromisso educativo do trabalho social” (Timóteo & Bertão, 2012: p. 15), posturas rigorosamente incompatíveis com abstratos exercícios de neutralidade e de desresponsabilizada impessoalidade.

O exercício de assunção valorativa realizado no quadro de uma Formação Pessoal e Social decorre aliando o cuidado teórico em demonstrar a historicidade dos valores, a sua inscrição e enraizamento pessoal e social, o seu existir fluído e deveniente com a dimensão teórico-prática, que permitirá concretizá-los em questões identitárias, culturais e cívicas, mostrando como se tornam instrumentos de regulação e de emancipação, de libertação ou de opressão, num processo crítico, dialogado e empático. Aqui, uma vez mais, reforça-se a abordagem relacional que se impõe à questão dos valores, cuja dinâmica é perspetivada no contexto da construção de identidades pessoais e culturais. Numa abordagem teórico-prática permitida pelos exercícios de debate e de confronto de ideias, de empatia, de análise e gestão de conflitos, coloca-se em questão a dupla modalização das identidades culturais: entre afirmações pessoais e culturais vincadas, mas frequentemente silenciadas no reduto social alargado e, por outro lado, tomadas de posição ostensivas, geradoras de distâncias e assimetrias entre discursos dominantes e grupos desfavorecidos ou marginalizados (Cf. Wieviorka, 2002: pp. 47-50).

Assente na diferença e na relação, com o enfoque na construção ético-política das identidades, tal abordagem valorativa permite que se trabalhem representações, auto e hétero-conceitos (Cf. Kenny, 2004: p. 3), dimensões pessoais e societais enquadradas na construção de uma democracia inclusiva e no perfil crítico e interventivo do/a educador/a social.

Nunca é demais sublinhar, todavia, a aceção dinâmica e aberta conferida à questão identitária, em detrimento de conceções rígidas e reificadoras em que os estereótipos e os lugares comuns são erigidos ou mantidos, favorecendo discursos ainda dominantes de menosprezo e rotulagem do Outro. Sublinha-se, por isso, a necessidade de uma capacidade crítica e de uma leitura (pessoal e coletiva) do social que não ceda a preceitos cristalizados e estanques, com riscos evidentes de manutenção de um registo opressor, menorizador, paternalista e assistencialista, nos antípodas do modo como se concebe, no quadro desta formação, a profissionalidade da Educação Social.

Desafios vivenciais

Nas aulas de carácter prático ou teórico-pratico são mobilizadas metodologias diversificadas que apelam a uma participação ativa, responsável e crítica dos alunos, designadamente os debates de opiniões, o visionamento de filmes e a apresentação de trabalhos individuais e de grupo. As aulas práticas, em particular, ao serem desenvolvidas em metodologia sociodramática, permitem que os alunos tenham a oportunidade de abordarem temas e de colocarem e vivenciarem questões significativas para si, enquanto pessoas, cidadãos, alunos de Educação Social e membros da comunidade ESE/IPP. No jogo contínuo entre o Eu e o(s) Outro(s), cada um tem a possibilidade de se ir desenvolvendo e definindo enquanto pessoa e profissional.

Pela especificidade da metodologia seguida nestas aulas, faremos um breve enquadramento teórico da mesma que servirá, designadamente, de suporte à sessão e ao vídeo apresentados.

O Sociodrama foi criado por Jacob Levy Moreno sendo definido pelo mesmo como um método profundo de ação para a abordagem de relações intergrupais e de ideologias coletivas, tendo por enfoque o grupo ou o tema (Moreno, 1946/1997, 1959/1983). Fundamenta-se na valorização da realidade subjetiva e do encontro vivo, no aqui e agora, entre as pessoas; privilegia a relação, a ação e a encenação, sem descurar a reflexão; visa integrar os princípios universais do tempo, do espaço, da realidade e do cosmos; e tem como fim último o desenvolvimento da espontaneidade e da criatividade dos indivíduos (Fox, 2002).

A praxis sociodramática, alicerçando-se no vínculo entre mente e corpo, inscreve-se no trinómio Instrumentos – Etapas – Contextos e sustenta-se num conjunto de técnicas.

Os instrumentos são cinco: Palco – espaço vivo, multidimensional e adaptável onde se desenrola a ação; Protagonista – elemento que sobressai do grupo pela pertinência das vivências que traz à discussão. No Sociodrama, o/a protagonista é, em geral, o próprio grupo, pelo que todos os membros devem ser colocados no palco com vista a resolver conflitos interpessoais ou agir sobre problemas comuns; Diretor – produtor/a, terapeuta e analista social. Na realidade da ESE/IPP, o papel de diretor é, em geral, assumido por um docente, com formação no modelo psicodramático e com um know-how da dinâmica institucional e dos princípios e funcionamentos da Educação Social; Egos-auxiliares – extensões do/a diretor/a, quando exploram e guiam, bem como extensões do/a protagonista, quando representam as personae reais ou imaginárias do seu drama vital. O papel de ego auxiliar tem sido desenvolvido na realidade da ESE/IPP por um profissional com formação no modelo ou por um/a (ex) aluno/a de Educação Social, possuidor de uma formação teórica basilar e por uma experiência vivencial de dois anos na metodologia em causa; Auditório – formado pelos elementos do grupo que se mantêm sentados aquando da dramatização, testemunhando as situações dramatizadas, ampliando-as com as suas próprias emoções, que partilham com o/a protagonista.

No que concerne às etapas, estas são três e ocorrem numa ordem sequencial. A primeira fase da sessão, denominada de aquecimento, é aquela em que o/a diretor/a procura perceber o emergente grupal, através de um diálogo que mantém com os elementos do grupo e/ou mobilizando um conjunto de técnicas de visualização e jogos coletivos especificamente seleccionados para o efeito. Neste primeiro momento, o/a diretor/a, após estimar o estado do grupo, escolhe o protagonista e/ou a temática, focalizando-se nele/a com vista ao aquecimento emocional necessário ao trabalho dramático. Na fase da dramatização, o/a protagonista é convidado/a a vir para o palco e a vivenciar, no “aqui e agora”, as questões e/ou conflitos comuns. Aqui o/a protagonista exprime-se na ação, sendo os fatos preferencialmente mostrados e não narrados. Para tal, o/a diretor/a cria um conjunto de cenas e mobiliza as técnicas sociodramáticas necessárias, de acordo com a sua hipótese terapêutica. Na última fase, a dos comentários, procura-se efetuar a avaliação e a síntese das etapas anteriores, com destaque para o vivido na dramatização.

Por fim, os contextos são o social (contexto onde os sujeitos vivem e interagem e onde regressam após cada sessão); o grupal (constituído pela realidade específica do grupo em si, num espaço e num tempo próprios); contexto dramático (constituído pela realidade dramática, do “como se” da relação, do espaço e do tempo).

Também as aulas práticas de Formação Pessoal e Social seguem os princípios, pressupostos e praxis definidos por Moreno.

De frequência semanal, as mesmas desenvolvem-se em salas de aulas amplas que possibilitam a constituição do setting sociodramático e as mesmas não são, em geral, preconcebidas, uma vez que partem das questões, preocupações e/ou necessidades dos/das estudantes em cada momento da sua formação académica e vivência escolar e social. A intervenção sociodramática decorre de uma dança entre protagonista e egos auxiliares, comandada pelo/a professor/a-diretor/a, que propõe cenas e mobiliza um conjunto de técnicas com vista à clarificação e/ou aprofundamento da temática em jogo e ao desenvolvimento da espontaneidade do/da protagonista. Das diversas técnicas, as mais mobilizadas neste contexto são a inversão de papéis, o solilóquio, a escultura, o role-playing, o duplo, a interpolação de resistências e os jogos (Veiga, 2009).

Uma sessão… vista pelos alunos (*)

            Descrição

A 13ª sessão iniciou a fase do aquecimento, como é habitual, com um espaço para comentários, sendo que a protagonista do exercício realizado na sessão anterior aproveitou o momento para refletir acerca da mutabilidade do nosso sistema de valores ao longo da nossa vida. Não obstante, a aluna defendeu a estabilidade de alguns valores e princípios estruturantes que regem e orientam a ação de cada indivíduo, de cada grupo, sociedade ou profissão. Seguiram-se alguns comentários sobre o assunto e um debate sobre a importância da flexibilidade, que abriu espaço a uma reflexão grupal mais abrangente sobre os valores e as competências que o educador social deve possuir e/ou desenvolver.

Passada à fase da dramatização, foi-nos proposto, como primeira cena, que utilizássemos panos de cores variadas e, com os mesmos, deveríamos construir uma escultura que representasse as características e as competências de um educador social. Cada um foi partilhando naturalmente a sua visão, acrescentando um pano à escultura que se ia construindo. Características como a flexibilidade, a implicação, a criatividade, a escuta ativa, a comunicação, a persistência e as capacidades de mediação e de improvisação, entre outras, foram salientadas como essenciais no dia-a-dia de qualquer educador social. No final, o grupo apercebeu-se que a escultura tinha adquirido espontaneamente a forma de um barco (Fig. 1), fato que potenciou vários comentários de surpresa e muitas reflexões.

Figura 1.

sofia1Cada um de nós foi convidado a colocar-se na característica/competência que considerava estar mais desenvolvida em si, realizando de seguida um solilóquio. Seguiu-se nova diretriz, similar à anterior, só que agora relativa à característica/competência menos desenvolvidas.

Posteriormente foi-nos proposto que realizássemos uma nova escultura, mas desta vez, centrada nos valores que considerávamos importantes na orientação da conduta do educador social. Cada um foi, à semelhança do exercício anterior, partilhando a sua perspetiva e contribuindo para a construção da escultura solicitada. Valores como a justiça, equidade, solidariedade, respeito, foram equacionados. Também esta ganhou, espontaneamente, uma forma que potenciou a reflexão e vários comentários. Desta vez, a forma assemelhou-se a uma de árvore (Fig. 2).

Figura 2

sofia12Cada um colocou-se no valor que considera mais basilar na Educação Social, realizando de seguida um solilóquio. A maioria dos elementos do grupo colocou-se na justiça, no respeito e na igualdade. A sessão encerrou-se com a habitual fase de comentários e verificou-se que vários membros do grupo sentem que a abordagem destes temas e sua consequente reflexão, devem ser basilares no percurso profissional de qualquer educador social.

Reflexões individuais de três alunas sobre a sessão

Inês: Na minha opinião esta sessão pode exprimir o teor do percurso deste grupo nas sessões de sociodrama. No fundo, tem-se notado, ao longo das sessões, mais do que um crescimento pessoal, uma tentativa de compreender e aprofundar as competências que deve possuir um educador social. Se bem que estes objetivos (tanto a nível pessoal como profissional e grupal) acabam por se interligar na perfeição e confluir justamente no sentido do crescimento e desenvolvimento. Foi-se sentindo alguma confusão relativamente à distinção entre competências e valores orientadores da ação; e, por outro lado, muitas das competências apresentadas relacionam-se intimamente e são mesmo frutos dos tais valores orientadores. Na minha opinião, em relação às competências, destaca-se (relativamente à postura do educador social) a flexibilidade. Cada vez mais acredito que, sem flexibilidade, será impossível construir e desenvolver algum tipo de trabalho que pressuponha o estar lado-a-lado com as pessoas. A flexibilidade acaba por conduzir à escuta e até a uma atitude menos julgadora dos outros e das suas ações. Por outro lado, e afastando-me daquilo que considero ser especialmente importante para os educadores sociais, deve salientar-se a importância da liberdade e da equidade, também intimamente ligadas. São estas as dimensões que me guiam e que guiam a minha ação. Por um lado a liberdade; a liberdade do acesso, a liberdade de expressão, de pensamento, de olhar e de sentir o mundo, como realmente o vemos e sentimos. A liberdade de dar os passos que entendermos, por vezes por caminhos incompreensíveis aos olhos dos outros; a liberdade de olhar criticamente para os meandros da vida, de nós próprios e dos outros, e trabalhar no sentido da mudança que considerarmos necessária. Claro que, atualmente, esta noção de liberdade está hipotecada. Hipotecada por interesses individualistas que se alevantam e que vão insistindo e fomentando a alienação de um povo submerso em dificuldades de subsistência mínima, tanto ao nível das ditas “necessidades básicas” como ao nível da cultura e instrução. Estando a liberdade hipotecada, também a justiça e a equidade o estão, já que não existe forma de assegurar qualquer uma das duas justamente sem o exercício da liberdade. Durante a sessão o grupo mostrou-se participativo e foi-se sentido nos participantes um esforço honesto de reflexão em profundidade sobre estas questões.

Maria: Nesta sessão senti que existe alguma confusão entre competências e valores, e, por outro lado, expetativas e visões muito diferentes em relação ao educador social. Por exemplo, entre Liberdade e Justiça, mais elementos consideravam a liberdade mais importante que a justiça. E, para mim, não há liberdade sem justiça, ou a liberdade é em muito limitada quando há falta de justiça. E, além da justiça, também a igualdade é valor essencial. O que quero dizer é que um ser humano que não tem acesso à alimentação, habitação, saúde, educação não é livre de todo, por muito que preguem que é.

Ao longo deste Diário de Bordo já havia refletido sobre os valores que a sociedade incute nos indivíduos e sobre os valores que hoje assumem um papel central. E nesta reflexão faz sentido discutir novamente a questão. A par do individualismo, meritocracia, competitividade, há tendência para valorizar muito a liberdade. Mas não é esta liberdade que, para mim, faz sentido. Por exemplo, dizemos que os estudantes da União Europeia são livres de fazerem unidades curriculares noutros países, ou, então, de fazerem um semestre fora, através de programas como Erasmus, Sócrates, etc. Mas quantos estudantes Portugueses, por exemplo, têm efetivamente condições económicas para fazerem uma mobilidade Erasmus? E dizemos que somos livres? Livres de não ir, só se for (…) Hoje valoriza-se muito a capacidade de adaptação, a flexibilidade e, diz-se por aí, que temos de ser empreendedores. Se em Portugal não existe emprego então emigre-se, e somos sempre livres de sair, viajar, procurar um futuro melhor. Mas pensemos seriamente no assunto: eu sou livre de ir para outro país, mas não sou livre de ficar no meu?

A liberdade não faz sentido se não for acompanhada de direitos fundamentais que garantam aos indivíduos a sua sobrevivência e qualidade de vida. Eu gosto de dizer o que penso, mas se tivesse fome preferia comer a falar. Por outro lado, quando todas as pessoas tiverem a barriga cheia, tiverem casa, saúde, educação, mobilidade, etc, são mais livres de criarem a sua própria liberdade, porque não estão preocupadas em sobreviver.

Este exercício contribuiu muito para a minha reflexão pessoal sobre o papel do educador social. Mais uma vez confirmo que o educador social não é, nem pode ser, um profissional neutro, imparcial, como se diz às vezes. O educador social tem de assumir um papel crítico e deve nortear a sua ação, nunca numa perspetiva assistencialista, mas sim numa perspetiva autonomizadora e que potencie indivíduos capazes de lutarem pela sua liberdade. O trabalho do educador social é um trabalho essencialmente político.

Carolina: No que concerne aos valores do Educador Social, considerei que os mais importantes são o respeito e a equidade pois, através destes, conseguimos alcançar todos os outros que são igualmente pertinentes. Quanto às competências do educador social, eu apresentei a capacidade de comunicação, a tolerância, a capacidade de improvisação e a criatividade. Senti-me mais à vontade em dialogar sobre as competências do que propriamente sobre os valores, tendo em conta que considero que estes podem variar consoante a nossa vivencia mais pessoal, enquanto as primeiras acabam por ser mais compartilhadas por todos. Considero que foi bastante importante a parte final do exercício onde tivemos que escolher a competência com a qual mais/menos nos identificamos. Apesar de ter sido difícil optar somente por uma, foi importante, porque me permitiu perceber quais as características que tenho de trabalhar e explorar mais, e aquelas que já possuo para o desempenho da minha profissão.

Esta sessão foi importante para percebermos que a nossa identidade pessoal vai condicionar a nossa identidade profissional e vice-versa. Existem valores estruturais que, à semelhança das raízes da árvore, vão sendo desenvolvidos ao longo da nossa formação e experiência; outros, vão sendo questionados e abandonados, porque não os podemos ter na nossa profissão. Por fim, considero que a primeira escultura que o grupo desenvolveu foi particularmente rica e criativa, porque, de forma não intencional, criámos algo semelhante a um barco. E um barco pode significar muito para o educador social, tendo em conta que este deve ser um profissional que navega com o outro, por mares (des)conhecidos, nem sempre calmos, mas que lhe permitem aceder a novas realidades, a novos mundos, a novas possibilidades.

O processo sociodramático… vivenciado pelos alunos

Ao longo do ano letivo, os alunos das três turmas práticas tiveram a oportunidade de vivenciar vinte aulas, desenvolvidas num clima de liberdade, de tolerância e de respeito incondicional por cada um. As vivências foram múltiplas e variadas. Muitas delas partilhadas, outras tantas específicas de cada grupo-turma e de cada indivíduo particular. O vídeo apresentado testemunha os olhares dos alunos sobre esta experiência formativa, uma vez que a narrativa que acompanha as imagens foi construída por alunos das três turmas do 2º ano do ano letivo de 2012/13(*).

 

Conclusões

A unidade curricular de Formação Pessoal e Social revela-se essencial na formação dos educadores sociais, já que a sua profissão se baseia e apela constantemente a questões de índole ético-valorativa. A par de um enquadramento teórico que sustenta a visão histórico-conceptual e desenvolvimental das questões valorativas, apela-se a um debate e a uma reflexão constante sobre a premência e a exigência de novas abordagens valorativas decorrentes de novas emergências. A interdisciplinariedade e a diversidade metodológica que caracteriza esta unidade curricular, que a enriquece e sustenta, exige, por parte de alunos e professores, um esforço de integração nem sempre fácil. Mas “O caminho faz-se caminhando”, como diria António Machado e Fernando Pessoa, e no caminho calcorreado, ao longo do ano letivo, os alunos vão encontrado sentido(s) na e para a Formação Pessoal e Social. Nas aulas práticas em particular, e como consta nos testemunhos dos alunos, os diálogos estabelecidos, as encenações dramáticas e as técnicas mobilizadas possibilitam que os mesmos abordem temas e preocupações valorativas resultantes sobretudo do seu papel enquanto cidadãs e cidadãos, mas também enquanto membros de um dado grupo escolar e profissional. Munidos de um saber construído e com os outros, cada um é desafiado a tomar consciência dos valores presentes em si, na sociedade e na sua profissão, bem como a analisar criticamente as conceções estereotipadas, presentes em si e nos outros, abrindo-se a outras conceções, valores, posturas e realidades de modo a agir com maior flexibilidade e espontaneidade na sua realidade social e profissional em prol do desenvolvimento e do empoderamento de todos/as.

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